terça-feira, 18 de setembro de 2012

Análise crítica de "História meio ao contrário", de Ana Maria Machado

prof. Marciano Lopes
 
 
 
 
Contemplando nossas aulas sobre a literatura de Ana Maria Machado, na qual faríamos em classe uma análise e discussão de História meio ao contrário e  Era uma vez um tirano, vejamos nesta aula à distância um roteiro de estudo da primeira história em questão com o objetivo de discutir as relações entre estética e ideologia e mais especificamente o uso instrumental da literatura infantil na educação das crianças. Para tanto, observem: 
 
1) Quanto à linguagem:
 
1.a. Interferência da narradora, que conversa/dialoga com o leitor.
1.b. Uso da ironia e do deboche por parte da narradora.
1.c. Usa de metalinguagem (há uma dimensão metanarrativa em seu discurso).
 
2) Quanto à contrução/caracterização dos personagens:
 
2.a. Uso da sátira e do humor para caracterizar a figura do rei, que é rebaixado.
2.b. Caracterização da princesa segundo valores e comportamentos modernos. Diversamente das princesas tradicionais, ela não se submete à vontade paterna(decidindo escolher seu próprio marido)  e sonha sair de casa, correr mundo e estudar.
2.c. Caracterização do príncipe como aventureiro e hedonista, pois resolve enfrentar o dragão apenas por diversão para combater o tédio da vida de nobre. Desta forma, ele perde grande parte do heroicismo e da nobreza de caráter que deveriam lhe caracterizar.
2.d. Caracterização da camponesa como protagonista e heroína da história, pois é capaz de movimentar seus companheiros (os servos da gleba) na luta pela salvação do "Gigante".
2.e. Descaracterização do dragão comno ente do mal, pois é apresentado como sendo a lua, imensamente bela e responsável pelo surgimento do amor do príncipe pela camponesa assim como pela existência do tempo de repouso destinado aos trabalhadores.
2.f. Caracterização do gigante como dócil e preguiçoso, aliás, este é também - e principalmente - uma alegoria da natureza e da nação brasileiras. Veja-se a referência ao hino nacional em sua caracterização.
 
3) Quanto à estrutura:
 
Inicialmente, é importante considerar que os contos de fadas, assim como as histórias infantis, populares e a literatura trivial (ideológica), seguem uma estrutura narrativa simples, que pode assim ser sintetizada: a) surgimento de um problema que abala a situação de felicidade inicial; b) aparecimento de um herói que deverá enfrentar obstáculos/provações para resolver o problema; c) resolução do problema com retorno à situação de equilíbrio. Com base nos estudos de V. Propp sobre a estrutura do conto popular, Karin Volobuef (1993) aponta as seguintes unidades - ou etapas - na estrutura das histórias do gênero:
 
a) situação introdutória;
b) surgimento de um problema;
c) procura por uma solução - o herói sai em viagem com o propósito de cumprir a tarefa  que lhe foi imposta (resgatar a princesa, buscar algum objeto mágico etc.);
d) submissão a uma ou mais provas em que o herói tem suas qualidades testadas;
e) êxito na(s) prova(s) - o que implica na punição do malfeitor;
f) final ditoso (ou seja, feliz), em que a protagonista casa-se com o príncipe ou enriquece.
 
Em História meio ao contrário, a alínea "e" é subvertida, pois o príncipe (que deveria exercer a função de herói) não obtém êxito em suas provas e, por conseguinte, não mata o "dragão". Isso se deve ao fato de que a personagem feminina deixa de ser submissa e torna-se heroína - o que não é novo e nem tão subversivo, pois em muitos contos de fadas as personagens femininas são protagonistas ativas, como acontece na versão de Cinderela dos irmãos Grimm, ou em "A inteligente filha do camponês", também deles (e lida em classe dia 10 de setembro).
 
Por fim, a alínea "f" também é subvertida, pois apesar de termos um final ditoso, este rompe com o fim tradicional, em que a heroína, pobre e pertencente ao povo, sobe na estrutura social ao casar-se com o príncipe. Neste caso, ocorre o contrário: ele desce na estrutura, pois se torna camponês, abandonando sua vida de "dulce far niente", hedonista e aventureira.
 
4) Quanto à ideologia:
 
4.a. Incorporação do discurso feminista através das atitudes da protagonista e da princesa, conforme observado ao tratarmos dos personagens.
4.b. Incorporação do discurso ambientalista através dos personagens do dragão e do gigante, que representam a natureza - a qual deve ser preservada ao invés de destruída (o que cabia ao príncipe fazer).
4.c. Incorporação da práxis sindicalista e da luta revolucionária, o que está presente simbolicamente na paralisação (greve) que os camponeses fazem de suas atividades produtivas para irem ao encontro do gigante.
4.d. Suavização da assimetria autor-leitor na medida em que a narradora dialoga com  o leitor criança e o incentiva à reflexão crítica sobre o fazer literário através da metalinguagem (da metanarrativa).
 
Conclusão
 
Pelas características inovadoras e por vezes subversivas apontadas, podemos afirmar que a história de Ana Maria Machado atualiza o gênero e o coloca a serviço de ideias e posições políticas não conservadoras e dominantes no cenário político, que era marcado pela ditadura iniciada em 1964. Entretanto, não é possível afirmarmos que não existe uma dimensão instrumental no texto, ou seja, que ele não esteja à serviço de determinados interesses políticos e ideológicos e que, para isso, não apresente finalidades educativas. Assim como na literatura anterior à produção lobatiana, também encontramos fins extrínsecos ao mero prazer da leitura e o uso da literatura infantil como instrumento de doutrinação, ainda que esta seja feita de modo mais sutil e atraente do que na literatura feita até o boom da nova literatura infantil dos anos 70. Isto aponta para a hipótese de que as instâncias canonizadoras do texto infantil brasileiro estão comprometidas com tais valores políticos, para tanto, vide o prêmio Jabuti recebido pela obra:
 
1994 - Lista Melhores do Ano, Fundalectura, Bogotá
1978 - Prêmio Jabuti, Câmara Brasileira do Livro
1977 - João de Barro, Pref. Municipal de Belo Horizonte
 
 
Referência:
 
BOLOBUEF, Karin. Um estudo do conto de fadas. Revista de Letras. São Paulo: Unesp, v. 33, p. 99-114, 1993.
 

Um comentário:

  1. Se a camponesa é a protagonista, quem pode ser considerado o antagonista nessa história?

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