sábado, 8 de dezembro de 2012

Os Contos de Fadas atuais e sua contribuição para o desenvolvimento infantil



Ao longo do trabalho realizado com os Contos de Fadas, percebemos a contribuição desse gênero para a formação da personalidade das crianças. Essas histórias desenvolvem as noções de respeito, educação e auxiliam no preparo para a resolução de problemas na vida adulta. Em outras postagens já nos detivemos na importância dos Contos de Fadas tradicionais na formação da criança. Nesta, para encerrar as postagens deste ano, referentes ao gênero, discutiremos algumas das questões que o tornam relevantes principalmente para, mas não somente,  os leitores infantojuvenis.

Os Contos de Fadas atuais retomam as histórias clássicas de princesas, príncipes, mágicos, rainhas, reis e bruxas. Porém, em suas tramas, na maioria deles, há ausência de maniqueísmo, pois os conflitos não são obrigatoriamente derivados da ação de uma personagem má. A ausência de personagens "do mal" é uma novidade que subverte o paradigma tradicional.

Outro aspecto inovador diz respeito ao caráter educativo pois apresentam um discurso mais sedutor  e menos autoritário e utilitarista, conforme discute Edmir Perrotti em  seu livro O texto sedutor na literatura infantil (1986). Vejamos alguns procedimentos e características inovadoras do gênero na atualidade:

- A quebra de expectativa: muitas histórias rompem com estereótipos do gênero de modo que o leitor se depara com fatos ou atitudes não esperadas. Um exemplo é a caracterização de Cinderela na história O fantástico mistério de Feiurinha, de Pedro Bandeira, pois sua atitude, que vemos no excerto abaixo, não condiz com a imagem idealizada que os Contos de Fadas tradicionais apresentavam de seus protagonistas, fossem príncipes ou princesas:


[…] a discussão já não estava mais naquele nível elegante que se espera de duas senhoras princesas de fino trato. Dona Cinderela já empunhava o sapatinho de cristal, disposta a dar uma sapatada na amiga. (BANDEIRA, 1986:23, apud SORIANO, 2009)

 

Os novos contos de fadas buscam acompanhar a mudança de valores da sociedade vigente. A princesa não precisa mais esperar pelo príncipe encantado para tramar uma fuga e nem sonham somente com o casamento. As novas princesas enlaçam o romântico ao ousado, ao atrevido, ao indelicado, fato este que as aproxima de seres “mais humanos” em comparação ao modelo tradicional.

 

 

- Formação de um leitor crítico: A partir dessa quebra de expectativa, o pequeno leitor não somente é levado a pensar sobre os conflitos como também é levado a questionar-se a respeito dos estereótipos, clichês e modelos narrativos "já prontos", uma vez que estes são "quebrados", quer dizer, desfeitos. Com isso, o texto proporciona, ou melhor, exige uma atitude mais crítica por parte de seu leitor. Para isso muito contribui a metalinguagem e o diálogo do narrador com o leitor de modo a incitá-lo à reflexão não somente sobre os temas tratados e a história narrada, mas também sobre o próprio caráter ficcional e artístico da obra. 

 

- A realidade representada é mais próxima dos leitores: Os Contos de Fadas atuais possuem temas mais polêmicos e presentes no cotidiano. A abordagem de temas como a exclusão social e o preconceito (seja racial, de gênero, social etc.) são recorrentes e levam o leitor pensar criticamente questões como   o comportamento/papel da mulher em sociedade ou mesmo a exclusão/diferença social, conforme abordamos em uma das postagens anteriores intitulada Valentina, a princesa da “Beira do Longe”- uma história atual.


- Ausência do maravilhoso/mágico:  A resolução dos conflitos em muitas histórias não ocorre graças à intervenção de elementos mágicos, maravilhosos, mas é decorrente da ação crítica dos próprios protagonistas. Desta forma, as narrativas atuais valorizam a iniciativa das crianças, transmitindo-lhes a ideia de que elas podem ser capazes de resolver seus problemas de forma autônoma. Novamente exemplificamos com a obra Valentina.

- Predomínio do discurso sedutor sobre o utilitário: Ao nos depararmos com os Contos de Fadas atuais, percebemos, dentre muitos fatores que tornam este gênero inovador, o foco narrativo pertinente ao seu caráter discursivo.

Os contos de fadas tradicionais, adaptados às demandas de uma prática pedagógica, que visava, principalmente, um modelo entendido como “educativo” pela sociedade “burguesa” da época, compreendiam um discurso utilitário, o qual é apontado por Perrotti (1986) da seguinte forma:


O discurso utilitário procurou sempre oferecer a crianças e jovens atitudes morais e padrões de conduta a serem seguidos, ordenando os elementos narrativos em função de tal finalidade exterior. Tais atitudes e padrões, evidentemente, inseriram-se na ordem da sociedade que os promoveu, uma vez que tal discurso buscou não somente adaptá-lo a um determinado modelo social: o burguês. (PERROTTI, 1986, p.117)


Esse caráter utilitário, além de tentar moldar um exemplo de comportamento a ser seguido, tinha como propósito resguardar as crianças e adolescentes dos perigos do mundo, e que se fundamentava na classificação normativa dos atos como “certos” ou “errados”. Com isso, as histórias adquiriam esse tom moralista, mencionado por Perrotti (1986).

Diferentemente deste modelo, os atuais contos de fadas surgem de modo a trazer à tona um discurso estético, nos quais consta uma veemência ideológica, tornando-se objeto com valor em si mesmo, discurso este sobreposto ao utilitarismo. Assim, o discurso estético já constitui a própria arte e, por ser arte, apresenta desejos, vozes, intuições, como assinala Perrotti (1986) ao dizer que a literatura voltada ao caráter estético tem as suas próprias leis, suas dinâmicas e requisições internas, que “se violadas em nome de um valor exterior como a eficácia junto ao leitor, pode comprometer irremediavelmente sua integridade estética”.
 

Outro aspecto a ressaltar é a questão do narrador pertinente a cada discurso. No discurso estético, o narrador pode, por exemplo, dialogar com seus leitores, de forma que se coloca em uma condição inferior a real, de adulto, para que seja compatível à realidade da criança (embora ainda exista uma assimetria com relação autor e obra), utilizando-se de intrusões, de humor e ironia, como também pode apresentar uma narrativa de caráter metalinguístico, tal qual ocorre em História meio ao contrário, de autoria de Ana Maria Machado.  

Quanto ao discurso utilitário, o narrador se manifesta autoritário, de modo a repreender, ensinar a partir de com uma perspectiva pedagógica, sem dar margem à interação autor-leitor. Esta questão referente ao discurso utilitário, e simultaneamente, ao narrador, foi abordada na postagem  Chapezinho Vermelho x Chapeuzinho Amarelo: medo do Lobo, medo bobo, na qual o grupo (GT1) responsável pela postagem, ressaltou, a respeito do discurso utilitário, que a “narração é pautada pela relação de poder e saber do adulto sobre a criança ingênua e ignorante”.


O novo estilo de se fazer literatura, incluindo os contos de fadas, surge na década de 70, a fim de trazer ao público infantojuvenil não apenas uma literatura voltada ao ensino, mas também com o objetivo de construir histórias que valorizassem a natureza humanizadora da obra de arte literária.

Ao retornarmos à postagem Uma fadinha atrevida com sua varinha de condão., a qual traz uma abordagem a respeito do livro A Fada que tinha ideias, de autoria de Fernanda Lopes de Almeida, observamos um exemplo do discurso estético, que funciona conjuntamente ao discurso utilitário às avessas, já que leva a criança a pensar e questionar a respeito das condições e ações pré-estabelecidas, que visam um padrão de conduta, porém sem apresentar uma proposta moralista.
 
Também citamos Ana Maria Machado como um exemplo, dentre vários autores que inovaram, nas décadas de 70 e 80, não só a respeito do gênero Conto de Fadas como também com relação às obras destinadas ao público infantil, pois:


A obra de Ana Maria Machado sinalizava, na virada dos anos 70 para os anos 80, que a literatura infantil não apenas se insubordinava  contra o sistema vigente, fosse ele o literário, o  político ou o  econômico. Revelava igualmente que era hora de se fazer uma nova história, “meio ao contrário”, porque, se dava seguimento ao que de melhor a literatura infantil fornecera até então, tinha, na mesma proporção, de procurar seu rumo e traçar os caminhos da estrada que se abria à sua frente, conforme uma aventura inovadora e plena de desafios. (ZILBERMAN, 2005, p. 54 apud SILVA, 2010)


Dessa maneira, notamos que, nos contos de fadas atuais, há a predominância do estético. Contudo, não podemos considerar que no discurso dos novos contos de fadas não exista nenhuma marca do utilitarismo.

Considerações finais

Esses novos contos de fadas ampliam a visão crítica de seus leitores, visto que eles saem de uma zona “estabilizada”, que é o conto de fadas tradicional, que apresenta sempre personagens boas e más (princesas e bruxas, respectivamente)  subordinação a um príncipe encantado e há sempre o final feliz relacionado ao casamento, diferentemente dos atuais, já que nem sempre há um conflito resolvido com o matrimônio. Algumas vezes nem há o maravilhoso na superfície do conto, como acontece em Valentina, mas ela o cria de forma a valorizar a sua realidade e mostrar que as diferenças estão muito mais no olhar do outro, do que vê de fora.

Desde os primórdios da humanidade, contar histórias é uma atividade importante na transmissão de conhecimentos e valores humanos. Essa atividade tão simples, mas tão fundamental, pode se tornar uma rotina banal ou representar um momento de grande valia na educação das crianças.

O que nos importa aqui é referenciar o valor dos contos de fadas no desenvolvimento intelectual e emocional das crianças. No que se refere à educação, este gênero proporciona condições que favorecem o amadurecimento psicológico, assim contribuindo para a formação da personalidade, visto que a criança pode aprender, por meio deles, a refletir e reconhecer pensamentos e sentimentos que ajudam ou atrapalham sua relação consigo mesmo e com os outros. Desta forma ela aprende a conviver com “o seu mundo interno” e a compreender que os problemas fazem parte da vida, mas podem ser superados. 


Referências


Era uma Vez... Letras Português. 2012.  Uma fadinha atrevida com sua varinha de condão. Post consultado em 05/12/2012. Disponível em: http://eraumavezuem.blogspot.com.br/2012/11/uma-fadinha-atrevida-com-sua-varinha-de.html


Era uma Vez... Letras Português. 2012. Valentina, a princesa da “Beira do Longe”- uma história atual.


Post consultado em 30/11/2012. Disponível em: http://eraumavezuem.blogspot.com.br/2012/10/valentina-princesa-da-beira-do-longe.html

 

Perrotti, Edmir. O texto sedutor na literatura infantil. São Paulo: Ícone, 1986.

Soriano, M. E. A. Contos de Fadas e Identidade Infantil. Monografia. UERJ. Faculdade de Formação de Professores, 2009. Disponível em: http://www.ffp.uerj.br/arquivos/dedu/monografias/MEAS.2009.pdf

STUDZINSKI, N. G. & HOLZSCHUH, M. S.  Contos de Fada e o Desenvolvimento Infantil. 2012.


SILVA, V. R. F. da. A recepção de Ana Maria Machado no âmbito escolar. 2010.


GT 5: Contos de Fadas na Atualidade


quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Didático e maravilhoso: O Saci, de Monteiro Lobato


Olá leitores, depois de uma aula de Literatura Infanto-juvenil com nosso professor da graduação (criador do blog), em que foi discutida a obra de Monteiro Lobato, resolvemos trazer à tona esse maravilhoso escritor que com sua obra foi o marco inicial da literatura infantil no Brasil.

Percebemos que não há na obra de Lobato uma leitura simplista e maniqueísta do mundo, pois a literatura do autor tem o viés de desenvolver o senso crítico no espirito da criança e, para tanto, não a trata como incapaz de desenvolver um olhar crítico sobre a literatura e a sociedade. No livro Caçadas de Pedrinho, por exemplo, quando os animais apavorados pela morte da companheira onça, fazem uma assembleia e traçam um plano de ação para resolverem a situação. Assim, o autor humaniza os animais, pois eles falam, incentivando/ensinando a criança que a organização faz parte da sociedade, e que devemos nos organizar para resolvermos assuntos que dizem respeitos a determinado grupo. Os animais não vencem, mas dão o maior susto nos moradores do sítio.

Na obra não paradidática do autor não há construção de narrativas voltadas predominantemente para a dimensão educativa, pois se há elementos que expressam preocupações didáticas, eles não convergem para o final. Há uma preocupação com o ensinar, mas isso não se sobrepõe ao fantástico, ao lúdico e ao maravilhoso. Não há amarração do discurso pedagógico voltado para o final feliz. Por exemplo, no fim da história de O saci, a personagem Narizinho é pega pela vilã Cuca e transformada em pedra e a luta então dos personagens Pedrinho e  Saci por reverter a mágica é o foco da narrativa, sobrepondo-se ao discurso escolar presente nas falas do personagem Saci, que ensina a Pedrinho os segredos da floresta e seus habitantes, sejam vegetais ou animais. E mesmo apresentando uma dimensão educativa, propícia para ser explorada nas auas de biologia ou ciências, seu discurso não parece um corpo estranho à ação narrativa pois se insere perfeitamente na trama, apresentando-se  natural à situação vividas pelos protagonistas, Pedrinho e Saci.  Como o primeiro desconhece a floresta e seus habitantes por ser criado no meio urbano e tenha curiosidade sobre esse mundo que lhe é desconhecido, as explicações do Saci são justificadas por uma necessidade da ação narrativa. Como se pode ver,  a obra pode ser explorada na sua dimensão mágica, pois a narrativa se apresenta como gênero de aventuras, juntamente com a sua  dimensão pedagógica, pois apresenta um olhar cientifico sobre a natureza, chegando mesmo a discutir de maneira muito crítica a relação homem x natureza através dos diálogos entre o Saci e Pedrinho.

 


Assim como argumentamos com respeito à obra O Saci, o discurso pedagógico também está em segundo plano, pois ocorre “perfeitamente” entrelaçado ao literário, de modo que, segundo Perrotti (1986), podemos considerar esse tipo de discurso como estético e, por consequência, o texto como sedutor.

Outro aspecto positivo de  O Saci é que a obra depõe contra a ideia de que Lobato é racista, pois o Saci é o herói da história e é dez vezes mais inteligente que Pedrinho. Essa questão do racismo em obras do autor já foi discutida aqui no blog, e pode ser vista por meio dos seguintes links: http://migre.me/caAR0; http://migre.me/caAS7; http://migre.me/caAU4.

Para finalizar, sem duvidas um dos grandes achados de Lobato foi conseguir mostrar o “maravilhoso” como possível de ser vivido por qualquer um. Com a mistura do imaginário com a realidade concreta ele mostra no mundo prosaico do cotidiano a possibilidade de ali acontecerem aventuras maravilhosas que, em geral, só eram possíveis nos contos de fadas ou no mundo das fábulas, e mesmo assim só vividas por seres extraordinários.
 
Por fim, uma observação a ser feita: essa postagem foi elaborada com base nas aulas da disciplina de Literatura infantojuvenil ministrada pelo Professor Doutor Marciano Lopes e Silva sobre Monteiro Lobato e as obras em questão.
 

Dicas:
 

Para quem quiser ler a obra Caçadas de Pedrinho completa: http://migre.me/cawK2
 
Para conhecer a vida e obra de Monteiro Lobato: http://migre.me/c5t21
 
Para quem não conhece a história do inicio da literatura infanto-juvenil em nosso país, no link http://migre.me/c5tlJ encontramos um pouco sobre marco inicial dessa literatura, um pouco sobre as contribuições e importância das obras “lobatianas” para o público infantil e também a ligação de seus personagens com o folclore, cuja presença na obra tinha como objetivo valorizar a cultura popular brasileira.
 

Referências

PERROTTI, Edmir.  O texto sedutor na literatura infantil. São Paulo: Ícone, 1986
 

GT 2: Autores Consagrados

"O avesso da gente"



Para contar as histórias desta coleção, eu escolhi alguns fios e costurei com um bordado.Você já viu avesso de bordado? Tem nó, tem linha pendurada, é uma confusão! Não dá nem para acreditar que aquele lado feioso faz parte do lado direito, todo bonito. Pois é, o avesso da gente é parecido com isso. Tem coisas que às vezes a gente não quer mostrar, só quer esconder. A beleza, porém, está em saber que todo o direito da gente tem avesso, ou todo avesso tem seu direito, assim como toda sombra tem sua luz.(FURNARI, 1998, p.32)

            É com esse pequeno e simpático texto que Eva Furnari, renomada autora e ilustradora de livros infantis, define a coleção “O avesso da gente”. Publicada pela editora Moderna, a coleção conta com quatro volumes que, embora apresentem histórias distintas, partilham a mesma temática: o respeito às diferenças físicas, psicológicas e culturais de cada ser humano.
     

 
O primeiro livro da coleção se desenrola no tempo das cavernas e conta a história de Lolo Barnabé, um homem inteligente e cheio de ideias que aproveitava o melhor da vida ao lado de sua grande paixão, a namorada Brisa. Por ser um homem inquieto e muito criativo, Lolo decide construir uma casa no alto do morro para ter mais conforto e comodidade. Em seguida, resolve trocar as peles de animais que ele e a amada vestiam por roupas e calçados. Não contentes, Lolo e Brisa aprendem a confeccionar todo tipo de modernidade: televisão, fogão a gás, bicicleta, armário, mesa, cama e até mesmo uma tábua de passar.

Entretanto, a rotina cheia de conforto e de novas tecnologias, começou a parecer vazia. Assim, Lolo é levado a refletir sobre a felicidade que sentia quando ainda desfrutava da simplicidade e das sutilezas que a vida dentro da caverna proporcionava. A história de Lolo, contada com a linguagem simples e bem humorada característica de Eva Furnari, é também a história do homem moderno que vive e sofre a insatisfação quase crônica que o motiva a sair de casa todos os dias para trabalhar e adquirir bens de consumo com a pretensa, falsa e frustrada crença de que tais artifícios trarão como brinde a satisfação e a felicidade que procura.
 


 
        “Abaixo das canelas”, outro volume da coleção, tem como cenário a “Poscovânia”, onde era expressamente proibido aos pobres “poscovônios” mostrar os pés. Ninguém sabia ao certo de onde vinha essa lei pra lá de esquisita, mas o fato é que o assunto era um grande tabu, de forma que os moradores de “Poscovânia” nem mesmo pronunciavam a palavra pé, quando muito, utilizavam a palavra pedúnculo, nome científico daquilo que ficava abaixo das canelas. Um dia, com o aparecimento de uma terrível “chulezite aguda” que se alastra gerando o caos com a coceira ininterrupta e o odor peculiar que passou a atormentar e a constranger os cidadãos, as razões que instituíram a lei “anti-pés” são reveladas e os moradores são levados a questionar esse antigo e infundado hábito.

Assim como em “Lolo Barnabé”, a crítica da autora não se limita às personagens do livro infantil, uma vez que é possível interpretar a “Poscovânia” como uma metáfora da sociedade em que vivemos, onde muitas coisas que fazemos, que não fazemos, que acreditamos, ou que não acreditamos, não passam de imposições sociais. Não raramente, somos manipulados seja pela mídia, pela publicidade ou por premissas e paradigmas culturais que nos impelem a agir, pensar e gostar de certas coisas sem que, ao menos, nos demos conta do real motivo pelo qual estamos admirando um determinado cantor ou vestindo a roupa imposta pela ditadura dos padrões de beleza.
 


 

“Umbigo indiscreto” se passa na “Bolofofolândia”, país em que a comida é tão importante que até mesmo a anatomia dos “bolofofos” gira em torno do bom apetite dos glutões. O umbigo, centro emocional de todo “bolofofo”, muda de cor de acordo com o humor de seu dono, motivo pelo qual todos escondem seus umbigos na tentativa de não deixar transparecer aquilo que verdadeiramente sentem. No dia da festa do Chocolate Escarlate, Bunza, a menina mais rica da cidade, chega atrasada e acaba se vendo obrigada a dividir assento com pequena Pelúcia, que ela nem ao menos conhecia.

A antipatia foi imediata, gratuita e recíproca, quanto mais as duas garotas conversavam e contavam uma a outra sobre suas vidas, mas se estranhavam. Até que, um repentino rasgo no vestido de Bunza deixa à mostra seu umbigo amarelo-mostarda, cor que denuncia a inveja profunda que a menina rica sentia de Pelúcia e das pequenas coisas que cercavam a vida simples da menina. Assim, o flagrante do “umbigo indiscreto” de Bunza dissolve os julgamentos precipitados de ambas e acaba rendendo uma grande amizade.

Não é preciso muito esforço para perceber que a “Bolofofolândia” está mais perto de nossa realidade do que queremos supor. A vaidade de Bunza ao se gabar de suas riquezas, o preconceito de ambas ao tecerem julgamentos recíprocos totalmente infundados, a hipocrisia com que continuam conversando para manter o traquejo social, a inveja que permeou o primeiro contato das duas meninas e a necessidade de se esconder aquilo que realmente se sente, são temáticas extremamente presentes e recorrentes no universo das crianças e dos adultos.


“Pandolfo Bereba”, quarto e último volume da coleção, narra a história de Pandolfo, um príncipe que contraria toda e qualquer expectativa criada acerca dos padrões de beleza, educação e valentia dos príncipes que povoam os Contos de Fadas. O príncipe não conhecia sentimentos como o amor e a amizade, e talvez por isso, gostava de colocar defeitos em todas as pessoas que via pela frente, sendo sempre muito arrogante e mal educado com os súditos que habitavam o reino da “Bestolândia”.

Certo dia, Pandolfo conhece Ludovica, uma moça muito autêntica e cheia de personalidade que trata Pandolfo da maneira que ele merece, contrariando-o sempre que necessário. No início, o príncipe se estarrece com o tratamento sincero e espontâneo que ele nunca havia recebido antes, mas depois acaba sendo conquistado pela personalidade de Ludovica a tal ponto que os defeitos da moça, apesar de evidentes, já não faziam a menor diferença.

A história de amor de Ludovica e Pandolfo traz à tona uma importante reflexão sobre a hipocrisia que perpassa as relações de muitas pessoas que, assim como os súditos da “Bestolândia”, fazem de tudo para se adequar aos padrões estabelecidos pela classe dominante em busca de status e ascensão social. Em seu livro, Eva Furnari ressalta ainda a importância do respeito às diferenças físicas, psicológicas, sociais e culturais que possuímos, diferenças que quando toleradas e compreendidas podem nos completar ao invés de nos segregar.



Durante a leitura dos quatro volumes desta coleção, a autora nos convida, com palavras simples e bem humoradas, para um necessário passeio que tem como destino um lugar onde é possível conhecer o lado feio do bordado, o lado confuso, cheio de pontas soltas e fios desconexos que, juntos, formam um lindo desenho do outro lado do pano. Esse lugar, tão bem guardado quanto o umbigo indiscreto de Bunza, cheio de defeitos como os que Pandolfo aprendeu a tolerar, repleto de tabus como o “pedúnculo” dos “poscovônios” e ao mesmo tempo tão simples e singelo como a caverna de Lolo Barnabé, é o que Eva Furnari chama de “O avesso da gente”.

Referências

FURNARI, E. Abaixo das canelas. São Paulo: Editora Moderna, 2000.

FURNARI, E. Lolo Barnabe. São Paulo: Editora Moderna, 2000.

FURNARI, E. Pandolfo Bereba. São Paulo: Editora Moderna, 2000.

FURNARI, E. Umbigo indiscreto. São Paulo: Editora Moderna, 2000. 

GT 2: Autores Consagrados

Viajando no trem de ferro de Manuel Bandeira


Manuel Bandeira foi um dos maiores poetas dentre os considerados constituintes da geração de 22 da literatura moderna brasileira. Grandes doses de simplicidade e lirismo permeiam sua obra, que, em geral, aborda temas cotidianos e universais. Enquanto grande conhecedor de literatura, Bandeira utilizou-se de formas inovadoras – repudiadas pela tradição literária de sua época – de modo a explorar recursos que evidenciam sua maestria e originalidade na composição de um poema. O autor também escreveu poesias que, entre outros aspectos, por seu caráter lúdico, musicalidade e relação com a cultura popular, são adequadas ao público infantil.
Veremos adiante uma análise do poema Trem de Ferro – escrito pelo autor na década de 30 – que permite a identificação de algumas características resultantes da abrangência do conhecimento de Bandeira, que era profundo conhecedor desde a poesia clássica, tradicional e escrita, até a cultura popular e oral – pouco valorizada ou abordada pela literatura da época. Vale observar que Trem de ferro, apesar de ser muito compreensível por uma criança, por sua linguagem simples, não parece ter sido escrita exclusivamente para o público infantil; parece instigar o leitor a encontrar a criança que há dentro de si, independente de sua idade, conduzindo-o a uma viagem de trem.
Eis o poema:
                                                   Trem de ferro
Café com pão
Café com pão
Café com pão
Virgem Maria que foi isto maquinista?
Agora sim
Café com pão
Agora sim
Café com pão
Voa, fumaça
Corre, cerca
Ai seu foguista
Bota fogo
Na fornalha
Que eu preciso
Muita força
Muita força
Muita força
Oô..
Foge, bicho
Foge, povo
Passa ponte
Passa poste
Passa pasto
Passa boi
Passa boiada
Passa galho
De ingazeira
Debruçada
Que vontade
De cantar!
Oô…
Quando me prendero
No canaviá
Cada pé de cana
Era um oficia
Ôo…
Menina bonita
Do vestido verde
Me dá tua boca
Pra matá minha sede
Ôo…
Vou mimbora voou mimbora
Não gosto daqui
Nasci no sertão
Sou de Ouricuri
Ôo…
Vou depressa
Vou correndo
Vou na toda
Que só levo
Pouca gente
Pouca gente
Pouca gente…



 
            Inicialmente, é interessante saber que no período em que o poema que acabamos de ler foi escrito, o trem de ferro era um meio de transporte (e também comunicação) muito utilizado e essencial para a economia agrícola do país. Além disso, na época, as pessoas costumavam se aglomerar para ver a chegada do trem. Como as mudanças importantes de uma sociedade se manifestam em sua literatura, era de se esperar que o trem viesse a ser mote de obras literárias.
Manuel Bandeira, no poema em questão, cria imagens acústicas que remetem aos sons produzidos por um trem em movimento: a musicalidade criada pela métrica livre, que não atende às regras tradicionais, dá liberdade a uma reprodução alegórica da cadência do trem em diferentes velocidades. Os três primeiros versos (Café com pão) são tetrassílabos, e pressupõem uma velocidade linear, e correspondente ao início de uma viagem. Os três sons oclusivos explosivos representados pelas letras c (que aparece duas vezes) e p, alternados com o fonema representado pela letra f simbolizam a cadência do trem. Além disso, o fato de café e pão serem alimentos geralmente consumidos no café da manhã pode ser um indicativo de que o autor alude ao início do dia e da viagem – afinal, era pelo amanhecer que muitos trens iniciavam suas jornadas.
Posteriormente, o leitor se depara com o verso “Muita força” – que se repete três vezes. Este possui três sílabas poéticas  - Mui (1ª) / ta (2ª) / For (3ª) ça (não conta, pois é pós-tônica) -, o que sugere uma velocidade maior que as quatro dos versos do início. Pode-se dizer, ainda, que sugere uma aceleração progressiva, já que muita força indica potência e aumento da velocidade no deslocamento do trem. É interessante observar, também, que após os versos em questão se dá a maior alternância de elementos constituintes da paisagem que pode ser vista por aqueles que estão no interior do trem. O fato de tais elementos (bicho, povo, ponte, poste, pasto, boi, boiada e galho) serem citados em versos trissílabos, em que se mantém a alternância entre sons fricativos (representados pelas letras ss, ch e Ç) e oclusivos (por sua vez, representados pelas letras b, p t, d e g), pressupõe uma maior velocidade do trem. Já os versos subseqüentes “Que vontade / De cantar”, um momento de mais alegria e empolgação por parte do eu-lírico. Este por sua vez, parece ser uma criança ingênua, o que torna o poema ainda mais belo e singelo.
É importante observar que a aproximação dos temas do poema com assuntos das cantigas populares e orais – o árduo trabalho no campo, no caso – associada à linguagem coloquial próxima de variantes não correspondentes ao padrão culto – como pode-se observar nos vocábulos “prendero”, “canaviá”, e “mimbora”, por exemplo -  mostra uma literatura autóctone, que valoriza a cultura regional e nacional.
Por fim, o término do poema ainda parece ter um tom melancólico, por fazer menção à saudade que o eu-lírico sente de sua terra. Os versos trissílabos ainda dão a ideia de velocidade e continuidade para a viagem, já que o poema termina com reticências. Porém, parece que, em oposição aos versos Café com pão e Muita Força, os versos “Pouca gente” indicam um arrefecimento tanto na velocidade do trem, quanto no estado de espírito do eu-lírico, ou mesmo o vindouro término da viagem. Observe-se também que eles remetem à ideia de que o trem é de carga, e carrega muito mais produtos agrícolas do que pessoas, já que a economia da época era tão ligada à agricultura.
Que fique claro que o presente texto não pretende esgotar possibilidades de leituras para o poema – que devido à sua importância certamente nunca deixará de ser estudado –, afinal, existem muitos outros aspectos a serem observados e aprofundados, mas evidenciar a estreita relação existente entre forma e conteúdo da composição, produzida com tanta sutileza e astúcia pelo autor, e fornecer ao leitor algumas informações intra e extratextuais importantes para a compreensão de tão valioso texto de nossa literatura.

Dica de leitura: Para mais poesias infantis de Manuel Bandeira visite a página http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_infantil/manuel_bandeira.html
Curiosidade: o músico Tom Jobim musicou o poema Trem de Ferro em 1986.
Referências:

GT1 – Poesia Infantil

A Boneca, de Olavo Bilac: discurso utilitário ou estético?


No decorrer das postagens expostas sobre o tema literatura e ideologia, exibimos várias histórias que apresentam os intuitos de: doutrinar o leitor, criticar atitudes e valores sociais, proporcionar uma reflexão educativa, dentre outros. Instigou-nos, contudo, o questionamento sobre a presença, ou não, desses discursos utilitários em poemas voltados para crianças. Com isso, escolhemos para análise dessa semana o poema, do consagrado autor Olavo Bilac, A Boneca.



A BONECA


Deixando a bola e a peteca,
Com que inda há pouco brincavam,
Por causa de uma boneca,
Duas meninas brigavam.

Dizia a primeira: “É minha!”
—  “É minha!” a outra gritava;
E nenhuma se continha,
Nem a boneca largava.

Quem mais sofria (coitada!)
Era a boneca. Já tinha
Toda a roupa estraçalhada,
E amarrotada a carinha.

Tanto puxaram por ela,
Que a pobre rasgou-se ao meio,
Perdendo a estopa amarela
Que lhe formava o recheio.

E, ao fim de tanta fadiga,
Voltando à bola e à peteca,
Ambas, por causa da briga,
Ficaram sem a boneca… 



Observamos, a princípio, que se trata de um poema narrativo, ou seja, de uma narrativa em versos e, portanto, não apresenta características líricas, apesar de destacar uma linguagem musical.

Esteticamente, o poema apresenta cinco estrofes, com quatro versos (redondilhas maiores – verso de tradição popular) cada uma e rimas cruzadas: ABAB CDCD ECEC FGFG HAHA. 

No que diz respeito ao narrador observamos que é heterodiegético. Exterior à história com função meramente narrativa, ele relata os acontecimentos, sem marcar um posicionamento em relação aos fatos narrados. Entretanto, na terceira estrofe esse narrador apresenta um pequeno grau de intrusão, ao expressar sua solidariedade com a boneca, afirmando que ela é “coitada!”. 
 
Por meio da linguagem utilizada, que inclui escolhas lexicais e organização sintática, notamos que temos um narrador adulto escrevendo para um leitor infantil, o que mantém a assimetria no poema e instaura um distanciamento entre o adulto e a criança. Um exemplo da maior elaboração da libguagem é a inversão sintática, na qual o sujeito e o verbo aparecem depois da oração subordinada adverbial causal, nos versos iniciais do poema: "Por causa de uma boneca/ Duas meninas brigavam".

Contudo, não há um discurso autoritário por parte do narrador, pois não fica evidente uma orientação direcionada às crianças; ele não diz o que elas deveriam ter feito para evitar a destruição da boneca e nem as condena por isso, o que resulta na ausência de uma “moral” explícita ao final do poema. A ideia de que é necessário compartilhar os brinquedos e de que a briga só fez com que elas ficassem sem a boneca, algo ruim para ambos os lados e que poderia ter sido evitado, está implícita no poema, mas não é imposta ao leitor. Cabe a este interpretar o texto e pensar, por si, as alternativas possíveis para que o final fosse diferente. Portanto, o poema não apresenta um juízo de valor, deixando o leitor livre para tirar as suas conclusões, razão pela qual consideramos que a função pedagógica não se sobrepõe à estética  e, por conseguinte, o poema  A Boneca apresenta um grau reduzido de utilitarismo, priorizando aquilo que Edmir Perrotti chama de "discurso sedutor".

 
Referências

PERROTTI, Edmir. O texto sedutor na literatura infantil. São Paulo: Ícone, 1986.
 
GT3 – Literatura e ideologia

A leveza e a comicidade de O fantástico mistério de Feiurinha







O fantástico mistério de Feiurinha é uma peça infantojuvenil escrita por Pedro Bandeira publicada em 1986. No mesmo ano, ganhou o prêmio Jabuti de melhor livro infantil.
 
Feiurinha é uma menina extremamente linda que foi criada por três bruxas (chamadas Ruim, Malvada e Pior Ainda) junto com Belezinha, a afilhada das bruxas. Feiurinha se acha realmente feia porque não sabe o que é o belo e porque acredita no que as bruxas lhe dizem. Junto de Feiurinha havia sempre um bode, que vinha a ser um príncipe que estava enfeitiçado; quando o feitiço se quebrou, Feiurinha se descobriu princesa, bela e amada por seu príncipe.
 
A história apresenta um aspecto inovador no tocante ao modo como inicia, pois a frase de abertura é a expressão cristalizada dos finais dos contos de fada tradicionais “e eles viveram felizes para sempre”. Feito esse preâmbulo, mostra como está a vida das princesas dos contos de fadas após o final ditoso das narrativas conhecidas. Branca de Neve, Cinderela, Bela Adormecida, Rapunzel e a Bela (da fera) estão todas casadas com seus príncipes encantados (agora são todas chamadas pelo sobrenome do marido: Branca Encantado, Cinderela Encantado...e por aí vai), grávidas e à véspera de comemorar as Bodas de Prata com seus maridos. A única que não se casou foi a Chapeuzinho Vermelho, que continuou solteirona e meio amarga com a vida por não ter conseguido um marido.
 
Chapéu (como agora é chamada) alarma as amigas sobre o desaparecimento de Feiurinha. Todas se reúnem no castelo de Dona Branca Encantado para procurar a solução para esse mistério.  As princesas descobrem que Feiurinha desapareceu porque sua história não foi escrita e decidem procurar um escritor. Por sorte do destino, a empregada do escritor conhece a história de Feirurinha e conta essa história para as princesas e para o escritor que registra a história em um livro.
 
Além da inovação no modo de abrir a narrativa, podemos encontrar em “O fantástico mistério de Feiurinha” mais dos aspectos que em que se verifica uma mudança crítica da estrutura canônica dos contos de fadas tradicionais: o conceito de beleza e a representação das princesas. Em Feiurinha o conceito de beleza foi invertido até certo ponto, pois feiurinha, apesar de sua beleza incomparável, sempre procura por “defeitos” (verrugas, manchas, etc.) em seu corpo, mas nunca os encontra e se acha muito feia porque não se parece com as bruxas que a criaram e com as quais vive.
 
Com respeito à inovação na representação das princesas, podemos observar que elas não são apresentadas como nos contos tradicionais, pois ao invés de seerem jovens e belas, elas estão todas casadas, grávidas (exceto Chapéu) e já são senhoras com cabelos brancos. Branca Encantado é um pouco burrinha (tem dificuldades para entender o que Chapéu lhe fala), Chapéu é gorduchinha e um pouco amarga com a vida, Bela (adormecida) só dorme e ronca, Rapunzel reclama que está com dor de cabeça porque seu marido está gordinho e insiste em subir pelas suas tranças, Cinderela tem calos nos pés devido ao sapato de cristal... todas as princesas tem defeitos! Estão mais velhas! São mulheres “de verdade”!
 
Conforme se vê, a peça apresenta uma intertextualidade com os contos de fadas mais conhecidos do público infantil. Entretanto, Pedro Bandeira humaniza, de forma leve e engraçada, as princesas ao mesmo tempo em que satiriza a ideia simplória de que o casamento deve é a realização mais importante na vida das pessoas, pois demonstra que ele não é a garantia de uma vida  perfeitamente feliz, sem problemas e tristezas.

 

Referências:
 

http://www.pedrobandeira.com.br/conheca-o-pedro/historia.aspx



GT 4: Teatro e música infantojuvenis