A palavra fada
vem do latim fatum, que significa
destino. A imagem mítica das fadas tem sua origem incerta, mas se acredita que
é oriunda de cultos anteriores ao paganismo, ligados às crendices da humanidade
primitiva. É também a única divindade do paganismo que se misturou às crenças
cristãs, diferentemente de faunos e centauros, por exemplo. Outrora, na idade
média, os contos de fadas estavam ligados à literatura oral de origem
folclórica, passadas pelos constituintes das camadas inferiores extremamente
exploradas pelo senhor feudal, a fim de satirizá-lo. Já no século XVIII, com a
ascensão da burguesia, alguns escritores profissionais passaram a compilar a
literatura oral em textos escritos direcionados a crianças, com o objetivo
pedagógico e moral de formar as futuras elites culturais de acordo com os
valores burgueses – em oposição à classe dominante e em declínio, a nobreza.
Foi o surgimento
da imprensa que permitiu que os contos de fadas começassem a ser escritos e
disseminados – por volta de 1685 a 1700 – principalmente para um público
particularmente simples. Em contraponto a esse movimento literário que nasceu
em função dos ideais políticos burgueses, havia uma corrente filosófica que
desprezava os contos de fadas, promovendo uma luta racionalista contra a
ignorância e as superstições. De fato, nas narrativas tradicionais, o modo como
as fadas solucionavam os problemas dos protagonistas subservientes e passivos
por meio de seus passes de mágica ou golpes do destino tende para uma
literatura de fuga e conformismo, incentivando o pensamento submisso, crédulo,
e não cientificista. Porém, a forma como o caráter místico é abordado na
literatura infantil contemporânea mostra que é possível fazê-lo de uma maneira
não alienante. Pelo contrário: utiliza-se dos elementos fantásticos para
promover uma reflexão crítica. É o caso do conto a seguir:
As notícias e o mel (Autora: Marina Colasanti
/ Livro: Uma ideia toda Azul)
Um dia o rei ficou surdo. Não como uma porta,
mas como uma janela de dois batentes. Ouvia tudo do lado esquerdo, do direito
não ouvia nada.
A situação era incômoda. Só atendia aos
Ministros que sentavam de um lado do trono. Aos outros, nem respondia. E até mesmo de
manhã, se o galo cantasse do lado errado, Sua Majestade não acordava e passava
o dia inteiro dormindo.
Foi quando mandou chamar o gnomo da floresta, e o gnomo, obediente,
apareceu na corte. Veio voando com suas asinhas, tão pequeno que, embora todos
estivessem avisados da sua chegada, quase o confundiram com um inseto qualquer.
Chegou e logo se entendeu com o rei, estabelecendo um trato. Ficaria
morando no ouvido direito e repetiria para dentro, bem alto, tudo o que ouvisse
lá fora. Tendo asas, e desejando, poderia aproveitar seu parentesco com as
abelhas para fabricar, no ouvido real, alguma cera e um pouco de mel.
O trato funcionou às mil maravilhas. Tudo o que o gnomo ouvia, repetia
em voz bem alta nas cavernas da orelha, e o eco e a voz do gnomo chegavam até o
rei, que passou a entender como antigamente, de lado a lado.
Correu o tempo. Rei e gnomo, assim tão vizinhos, foram ficando cada dia
mais íntimos. Já um sabia tudo do outro, e era com prazer que o gnomo gritava,
e era com prazer que o rei ouvia o zumbidinho das asas atarefadas no fabrico da
cera e do mel. Uma certa doçura começou a espalhar-se do ouvido real para a
cabeça, e o rei foi ficando aos poucos mais bondoso. Um certo carinho foi se
espalhando da caverna real para o gnomo, e ele foi ficando aos poucos mais
bondoso.
Foi essa a causa da primeira mentira.
O Primeiro Ministro deu uma má notícia no ouvido esquerdo, e o gnomo,
não querendo entristecer o rei, transmitiu uma boa notícia no ouvido direito.
Foi essa a
primeira vez que o rei ouviu duas notícias ao mesmo tempo.
Foi essa a primeira vez que o rei escolheu a notícia melhor.
Houve outras
depois.
Sempre que alguma coisa ruim era dita ao rei, o gnomo a transformava em
alguma coisa boa. E sempre que o rei ouvia duas notícias escolhia a melhor
delas.
Aos poucos o rei foi deixando de prestar atenção naquilo que lhe chegava
do lado esquerdo. E até mesmo de manhã, se o galo cantasse desse lado e o gnomo
não repetisse o canto do galo, Sua Majestade esquecia-se de ouvir e continuava
dormindo tranquilo até ser despertado pelo chamado do amigo.
De um lado o mel escorria. Do outro chegavam as preocupações, as
tristezas, e todos os ventos maus pareciam soprar à esquerda da sua cabeça.
Mas o rei tinha
provado o mel, e a doçura era agora mais importante do que qualquer notícia.
Entregou o trono e a coroa para o Primeiro Ministro. Depois chamou o gnomo para
junto da boca e murmurou-lhe baixinho a ordem.
Obediente, o gnomo voou para o lado esquerdo e, aproveitando seu
parentesco com as abelhas, fabricou algum mel, e abundante cera, com que tapou
para sempre o ouvido do rei.
O texto acima, que é um conto de fadas da literatura infantil
contemporânea, possui elementos fantásticos e imagens doces, bem como um
protagonista conformado em rejeitar a realidade por meio do isolamento do
mundo, e pela própria inserção em um mundo fantástico e fictício. Porém,
diferentemente das personagens da literatura infantil tradicional, sua
passividade é colocada como uma característica doentia de dependência. Diante
disso, o leitor, mesmo que uma criança, pode facilmente se deparar com o
caráter fantástico da narrativa de forma crítica, e não alienante. Vale
ressaltar que para que um conto seja caracterizado como conto de fadas, não é necessário
que ele possua especificamente um ser sobre-humano feminino com asas, varinhas
de condão, e todas aquelas características que nos remetem à imagem de uma
fada, mas que uma das personagens seja um ser sobrenatural com poderes místicos.
O conto apresenta uma moral implícita, pois no momento em que o Rei opta
por ouvir apenas as boas notícias e despreza as ruins, sofre consequências, que
no caso, é de não encarar a realidade. Essa situação possui relação estreita
com o nosso cotidiano, o que muda é a forma como lidamos com elas. Cada atitude
traz uma consequência, e cada consequência resulta em diferentes aprendizados
que influenciam o crescimento pessoal de cada um. O conto em questão evidencia
que por meio do fantástico pode-se promover uma reflexão que leva à compreensão
da necessidade de encarar os problemas de frente, incentivando a criança a
possuir uma postura ativa diante dos obstáculos que a vida lhe apresenta – o que
corresponde aos ideais afirmados pelos filósofos racionalistas do século XVIII –
e não a formação de valores alienantes e passivos.
GT 1 - Contos de fadas e narrativas orais (mitos e lendas)
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