Caros alunos, vejam a coincidência. No momento em que discuto com vocês a relação literatura e ideologia com base na polêmica sobre o livro "Caçadas de Pedrinho", de Monteiro Lobato, eis que novamente ressurgem acusações de racismo contra os negros em sua obra. Desta vez o esforço de censura é voltado ao livro Negrinha.
O "patrulhamento ideológico", além de chato, muitas vezes expressa uma atitude autoritária quando tenta impor uma determinada visão da realidade como a correta e verdadeira. Este constante estado de alerta não deixa de ter seu lado positivo na medida em que indica o fato de pessoas e movimentos sociais organizados estarem atentos ao cenário político-cultural, dele participando ativamente em defesa de seus interesses, no entanto é preocupante quando busca cercear a livre expressão do pensamento crítico e/ou artístico por meio de algum tipo de censura.
Pensando o problema em nossa área, que envolve educação e, mais especificamente, o ensino de literatura, o que se torna evidente é o fato de que - apesar das melhores intenções que existam - muitos destes "patrulheiros" demonstrarem uma incapacidade de ler o texto literário, quero dizer, uma incapacidade de compreender sua estrutura e funcionamento. Assim como no caso que comentei em classe esta semana, a acusação de que Negrinha é uma obra literária preconceituosa e racista é embasada em uma leitura equivocada do conto, que desconsidera noções básicas de letramento literário. Para denunciá-lo como racista, são consideradas atitudes e ideias de um personagem como expressivas da ideologia dominante no texto sem levar em conta a caracterização do personagem assim como a posição que ele ocupa na estrutura da narrativa. Desconsidera-se que a personagem D. Inácia é antagonista, que o narrador onisciente a ridiculariza, usando de ironia em alguns momentos e, em outros, expressando claramente seu repúdio a suas atitudes. Ainda mais: aqueles que criticam a obra como racista não enxergam - são totalmente cegos! - a empatia do narrador com respeito à protagonista, empatia que se revela claramente em vários momentos, especialmente no final da narrativa.
Em suma, o mais triste e preocupante não é o "patrulhamento ideológico" (que, como já disse, tem seu lado positivo, pois demonstra que as pessoas estão atentas na defesa de seus direitos), mas a incapacidade de se ler um texto literário simples, o semi-analfabetismo ou, no mínimo, o analfabetismo literário que campeia s solta por este país...
Para lerem o conto, vejam a obra (disponível para download) no site Scribd: http://pt.scribd.com/doc/18011970/Negrinha-Monteiro-Lobato-Completo. Para fazer download (assim como upload) de qualquer obra no site, basta cadastrar-se nele. É excelente!
Abaixo, carta aberta da professora Milena Martins (UFPR) sobre a questão de que tratamos.
prof. Marciano Lopes
CARTA
ABERTA à Secretaria de Educação Básica (SEB) do Ministério da Educação (MEC),
especialmente à COGEAM e às demais pessoas e instituições envolvidas no
Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE):
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Sou
professora de Literatura Brasileira da Universidade Federal do Paraná, tenho
atividade docente e produção bibliográfica na área de formação de leitores,
dentre as quais alguns materiais didáticos produzidos para o MEC: sou coautora
do livro Histórias e histórias: Guia do usuário do Programa Nacional
Biblioteca da Escola (SEB/MEC, 2001), do fascículo Organização e uso da
biblioteca escolar e das salas de leitura (MEC, 2005) e do artigo
"Experiências de leitura no contexto escolar", da coleção Explorando
o Ensino (Literatura: Ensino Fundamental, SEB/MEC, 2010). E, também,
sou autora e orientadora de pesquisas relevantes sobre a obra de Monteiro
Lobato.
Considero
da maior importância cultural e social os programas para formação de leitores e
de acervos desenvolvidos pelo MEC e só posso esperar que programas desse gênero
tenham continuidade, força política e crédito social.
Escrevo
esta carta aberta porque estou consternada com a representação recentemente
apresentada contra o livro Negrinha, de Monteiro Lobato, livro que não é
racista, nem tampouco sexista. O conto que dá nome ao livro desperta um
sentimento de angústia diante do sofrimento vivido por Negrinha, e desperta
também uma forte reação contra práticas racistas, discriminatórias e violentas.
Hoje dei duas entrevistas a esse respeito na mídia. Mas as condições de debate
na mídia não têm sido as mais adequadas para desenvolvimento aprofundado de
ideias.
Peço
licença para apresentar algumas considerações sobre um pequeno trecho do edital
do PNBE (citado pelos senhores Costa Neto, Domingues e Santos Júnior), que a
meu ver mereceria uma discussão interna na SEB com vistas à sua reescrita. E,
dada a repercussão na mídia, creio que mereceria também uma manifestação
pública. O trecho a que me refiro é este, que copio do edital do PNBE-2013:
"Não serão selecionadas obras que apresentem moralismos,
preconceitos, estereótipos ou discriminação de qualquer ordem."
(Destaquei palavras que pretendo comentar.) Creio, pela minha experiência
docente, especialmente no trabalho com formação de leitores, que a compreensão
dessa frase pelos que estão envolvidos com o PNBE é diferente da sua
compreensão pelos senhores que assinaram a representação.
Permitam-me
dizer o que pode ser óbvio: a construção de personagens em obras ficcionais se
faz muitas vezes por meio de estereótipos. Arrisco dizer que toda obra cômica
faz isso. E também que boa parte dos personagens secundários, de obras boas e
ruins, são construídos por meio de estereótipos, porque são personagens planos,
sem densidade, apresentados por meio de poucos elementos, de traços rápidos.
Estereótipos não são um elemento negativo de uma obra. São, sim, elemento
constitutivo da produção ficcional. Creio que os responsáveis pelo PNBE também
pensem assim e por isso tenham selecionado (nas diferentes edições do programa)
obras que contêm, sim, personagens contruídas por meio de estereótipos, sem que
isso signifique demérito para as obras, nem tampouco flexibilidade no
julgamento da equipe que seleciona os livros.
Além
disso, obras literárias de alta qualidade podem apresentar (e em geral
apresentam) moralismos, preconceito e discriminação. As obras são filhas de seu
tempo, são impregnadas pela ideologia e pelos valores da época em que foram
escritas, e carregam esses valores de maneira explícita e implícita. Apresentam
moralismos, preconceito e discriminação sob a forma de ideias de
personagens, sobretudo. Apresentam, isto é, trazem em seu corpo, ideias
diferentes das de hoje. Discutem essas ideias, solicitam do leitor um
posicionamento, instigam o leitor a refletir. E refletir é o papel principal do
leitor diante de um texto. Apresentar uma ideologia não significa (na
minha compreensão do texto do edital) plantá-la como verdade nas mentes dos
seus leitores. Significa trazê-la no texto, impregnada no modo como o narrador
ou as personagens concebem o mundo, e, dessa forma, trazê-la para discussão,
debate, reflexão. Uma obra apresenta moralismos quando coloca no diálogo
entre personagens uma discussão sobre valores morais, ou religiosos, ou
políticos. Suponho que o MEC não tenha sugerido que não fossem adotadas obras
que discutissem ideias, mesmo quando elas fossem contrárias ao senso
comum e aos valores de hoje. Suponho, isso sim, que o edital tenha tentado
excluir do programa obras que fossem dogmáticas, que tivessem como primeiro
objetivo a expressão de valores (morais, políticos, religiosos) e que
apresentassem discussão desses valores por meio de uma trama ficcional ou de
uma estrutura poética insustentáveis. Não me parece que tenha sido essa a
compreensão dos senhores que assinaram a representação. Além de outros
problemas de leitura (que me fazem supor que eles não tenham lido o conto
inteiro, mas tenham pinçado pedaços que, fora do texto, podem parecer
adequados aos seus propósitos), eles julgam que o conto "Negrinha"
apresenta preconceito, e isso só é verdade no seguinte sentido: a personagem
Inácia é preconceituosa. Para além disso, o conto não dissemina preconceito.
Pelo contrário: ele denuncia a discriminação, os maus-tratos, a
violência, a conivência da igreja, e luta contra tudo isso, ao estimular a
identificação e o envolvimento emocional do leitor com a personagem principal.
Inácia, por sua vez, é ridicularizada, clara e ostensivamente. Suas atitudes e suas
ideias são desmerecidas também de maneira clara e ostensiva.
Uma
certa leitura do edital (a que fizeram os reclamantes) entende que não poderia
ser adquirida pelo programa nenhuma obra que contivesse qualquer moralismo ou
estereótipo, ou que apresentasse, em sua trama, qualquer ideia racista,
preconceituosa, qualquer violência, qualquer forma de discriminação. Por essa
leitura, estariam excluídos todos os contos de fadas, por serem violentos e
moralistas. Todas as fábulas: moralistas e dogmáticas. As cartas de viajantes e
sermões de jesuítas: dogmáticos, política e religiosamente interessados.
Estariam excluídas todas as obras realistas, porque, para denunciarem problemas
sociais (dentre os quais diferentes formas de discriminação), elas antes os
apresentam. Estariam excluídas todas as obras românticas, por apresentarem
"estereótipos saturados" (outro termo do mesmo edital). Gregório de
Matos, José de Alencar, Visconde de Taunay, Machado de Assis, Aluísio Azevedo,
Euclides da Cunha, Lima Barreto, Mário de Andrade, Erico Verissimo, Antônio
Callado, Rubem Fonseca, a lista é extensa. Não sei se ficaria um autor em pé.
Infelizmente, parece-me que a compreensão estrita do edital permite essa
interpretação.
Sugiro,
por isso, que esse trecho seja reescrito, não para dirigir o trabalho dos
especialistas, não para mudar as diretrizes do MEC, mas a fim de evitar ações
que, fundadas numa compreensão equivocada dos efeitos da literatura sobre os
leitores, ajam como censoras do que pode ou não pode ser integrado ao acervo
das bibliotecas escolares, pretendendo inclusive substituir-se à avaliação de
uma equipe da mais alta qualidade. Não creio, porém, que com a revisão do
edital o MEC acabará com a celeuma, dentre outros motivos porque celeuma dá
visibilidade, populariza os nomes das pessoas. Mas creio que tiraria das mãos
dos reclamantes um texto legal que eles começaram a usar como argumento para
sua ação. Talvez eu esteja dando valor demais para um ato de menor importância.
Tomara que seja isso.
Tenho
esperança de que nós, professores, teremos liberdade e acervo suficiente para
continuarmos a discutir nas escolas e na sociedade obras literárias de
qualidade, por meio das quais compreenderemos melhor nossa identidade, nossas
contradições, nossos problemas históricos. Compreender problemas é condição
para superá-los.
Atenciosamente,
Milena
Ribeiro Martins
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