A
autora Ana
Maria Machado escreve livros para os mais variados
gostos, tanto para adultos, quanto para crianças. Assim como diversos autores
de literatura, a escritora retrata realidades sociais em suas obras. Em
entrevista para o Jogo de Ideias, em 2010, Machado esclareceu, dentre outros
assuntos, como ocorre a construção de suas histórias:
Em
um de seus livros, “Beijos Mágicos”, voltado para o público infantil, Ana Maria
Machado apresenta, por meio de uma história divertida e contagiante, uma
temática bem atual: a separação dos pais.
A intrigante história inicia-se descrevendo
o contexto em que se encontra Nanda, personagem principal da trama: morando com
o pai e a avó, passando os fins de semana na casa da mãe – “Nanda tinha duas
casas. Numa, ela passava quase todos os fins de semana com a mãe. Na outra, ela
morava com o pai e a avó” (MACHADO, 1996). A princípio, notamos que aborda um
contexto, relativamente, moderno, no qual a filha permanece com o pai após a
separação dos pais, pois há até pouco tempo atrás, os filhos acompanhavam as
mães em situações semelhantes. Ou seja, essa história vivenciada por Nanda
expressa uma “sociedade em que a
hegemonia da família nuclear é ameaçada” (OLIVEIRA, 2008, p. 226).
Em
seguida, a autora descreve a rotina da menina: o pai a acordava, dava café da
manhã e a levava para o colégio, depois disso, a avó a buscava e a levava para
brincar e andar de velocípede na praça. A noite, seu pai era quem a botava para
dormir, sempre contando histórias que acabavam com o clássico “felizes para
sempre”. Nesse momento, Ana Maria Machado destaca que Nanda “sabia que o pai e
a mãe resolveram que para serem felizes para sempre era melhor não ficarem
juntos”. Podemos notar que a garota é diferente das demais crianças, pois o
esperado nessas situações é a falta de conformidade por parte da criança ao ver
sua família se “despedaçar”. No entanto, Nanda é uma garotinha conformada com a
situação em que vive, transformando sua realidade em um conto de fadas
influenciada pelas histórias que seu pai lhe contava antes de dormir. Podemos
destacar que Nanda é uma garota socialmente “bem relacionada”, convive
naturalmente com a questão da separação, mesmo utilizando o “fantástico” para compreender e organizar sua realidade. Oliveira
(2008, p. 226) defende que “Nanda
não parece lutar contra esta situação, aparentemente bem resolvida para ela, e
procura ver o lado positivo desta realidade, sentindo-se amada pelos pais, cada
qual a seu tempo”. Ou seja, Nanda quebra a expectativa e aceita a
situação dos pais, alegando sentir, apenas, “muita pena”, mas ser feliz para sempre vivendo como está, ora
com o pai, ora com a mãe.
Machado
compara Nanda com outras princesas dos contos de fadas: Branca de Neve, Rapunzel,
Cinderela e a Bela Adormecida; e o pai da garota é comparado a um príncipe:
“muito bonito e carinhoso”. Nesse momento, há uma mudança no comportamento dos
personagens, pois o pai começa a contar as histórias mais rápidas e Nanda
estranha esse comportamento, sente falta da dedicação anterior. Diante dessa
situação, podemos notar uma pequena, mas relevante, mudança de comportamento do
pai, agora com uma namorada ele procurava dividir sua atenção e dedicação. A
garota descobre que, em uma das noites, o pai a colocou para dormir e depois
saiu. No dia posterior, ela constatou que ele foi jantar com uma amiga. Nesse
instante, podemos perceber que há, por parte de Nanda, um “sentimento de posse quando ela percebe que
o príncipe não é só dela” (OLIVEIRA, 2008, p. 228). Em certo momento, o pai de Nanda afirma que a garota devia
conhecer a Bebel, pois ela era “linda, alegre, um amor...”. Nanda, contudo,
passa a ver a futura madrasta como o oposto do que o pai descreu, como uma
bruxa.
Fica
evidente, portanto, que a garota não aprova a nova relação do pai, dentre outros
motivos, por sentir a sua “estabilidade” ameaçada. Nesse momento observamos uma
mudança no comportamento de Nanda, antes uma garota doce, agora uma criança com
uma tendência possessiva pelo pai, talvez involuntariamente, mas que faz o
leitor, que, provavelmente, é uma criança com a mesma idade da protagonista,
refletir sobre o seu próprio comportamento e situação de relação com os pais,
que podem ou não serem separados.
Notamos, portanto, que, a partir desse
momento, a garota passa a “organize
[ar] a realidade através da fantasia, compreendendo o mundo pela ótica do
imaginário” (BETTELHEIM, 1979, apud, OLIVEIRA,
2008, p. 227), Nanda proporá soluções/explicações baseadas nos contos de fadas
que perpassaram sua infância. Ela julga que Bebel lançou um feitiço para seu
pai e, por isso, ele não consegue perceber que ela é uma bruxa. Quando conta
para sua mãe o ocorrido e ela defende Bebel, Nanda acredita que a futura
madrasta enfeitiçou também a mãe. Esse posicionamento da mãe está “evidenciando
a diferença entre a visão do adulto e da criança sobre o mesmo fato” (OLIVEIRA,
2008, p. 229). A separação vista como um fato que ocorre somente com os adultos
fornece uma perspectiva diferente para a criança, enquanto a Mãe acredita que o
seu ex-marido tem que ser feliz com um novo amor, nossa protagonista vê esse
fato como uma bruxaria, não entende o porquê de sua Mãe não concordar com suas
palavras.
No
desenrolar da história, tanto a mãe da menina, quanto o pai se casam. Desse
modo, Nanda vai morar com mãe e inverte os papéis: passava a semana com a mãe
e nos fins de semana ia para casa do pai “vigiar” Bebel. Segundo Oliveira
(2008, p. 229), “Enquanto Bebel era apenas a namorada do pai, Nanda levava a
situação como podia, no entanto, quando ela se torna a madrasta de verdade, a
menina passa a morar com a mãe”, revelando um repúdio da garota perante o novo
relacionamento do pai.
Entretanto,
a história dá uma reviravolta. Em um dos fins de semana na casa do pai, Nanda
fica sozinha com a madrasta, que está grávida. Esta, buscando uma aproximação
com a garota, permite que ela ande de velocípede dentro de casa, ação proibida
naquele local. Nanda acaba caindo e se machucando, fato que ocasiona uma
“reconciliação” entre as duas: Bebel a socorre do tombo com muita dedicação e
carinho, atitudes que levam Nanda a olhar para a madrasta com outros olhos (mesmo
sem admitir isso explicitamente), essa atitude maternal de Bebel, permite que
Nanda veja que ela quer ser mais que uma “madrasta”, quer ser uma amiga,
companheira, que na ausência de sua mãe cuidará dela com tanto carinho quanto a
mãe. Assim, a menina dorme nos braços da madrasta e esse “sono simboliza o
amadurecimento e é nele que o processo de aceitação da madrasta evolui”
(OLIVEIRA, 2008, p. 230). Para a aceitação acontecer plenamente, foi necessário
um fator grandioso para Nanda. Um tombo de velocípede foi a “brecha” que
faltava para a aproximação da madrasta, assim, ambas tiveram um momento único
que proporcionou um laço de carinho entre elas.
Após
esse momento, o pai e a avó chegam e Bebel sente que é hora do bebê nascer. No
hospital, o pai pega Nanda no colo e coloca o recém nascido no colo dela, ele
começa a chorar e Bebel sugere que Nanda o beije. Por meio dos beijos dela o
bebê encerra o choro. Desse modo, com o nascimento do irmãozinho e com as novas
situações vivenciadas, Nanda consegue aceitar a madrasta. É notório nessa
história que “A partir de um problema real, Nanda busca na fantasia a resolução
para a dificuldade de aceitar a nova realidade imposta” (OLIVEIRA, 2008, p.
231).
Vale
destacar, para finalizar, que os personagens do pai e da mãe não são nomeados.
Desse modo, assim como destaca Oliveira (2008), não remetem à pessoas
específicas e são lugares que podem ser ocupados por qualquer pessoa, pois a
história condiz com a realidade de diversas garotas e garotos que mantém duas
famílias, pais e mães separados. Na realidade que vivemos, a separação é um tema
rotineiro em boa parte das famílias. Percebemos que ao retratar essa temática
em um livro infantil, Ana Maria Machado busca uma aproximação e aceitação por
parte das crianças que o leiam. A escritora retrata de maneira “singela” uma
questão que para muitas crianças é motivo de lágrimas e problemas, destaca que
uma família (pai e mãe) quando amam seus filhos a questão da separação não
altera esse amor. E mesmo quando ambos constroem uma nova família, os filhos do
primeiro relacionamento continuam a serem amados pelos seus pais.
Machado,
por meio de um livro infantil, consegue tocar em um assunto bastante delicado
sem perder de foco o principal: seu leitor. Esse leitor consegue transportar
essa situação para sua vida real e identificar soluções para uma questão que
antes poderia ser bastante complicada de ser resolvida.
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Referências:
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MACHADO, A. M. Beijos Mágicos. São Paulo: FTD, 1996.
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GT - 3 - Literatura e idelogia
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