quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Real e fantasia: um beijo de pura magia



A autora Ana Maria Machado escreve livros para os mais variados gostos, tanto para adultos, quanto para crianças. Assim como diversos autores de literatura, a escritora retrata realidades sociais em suas obras. Em entrevista para o Jogo de Ideias, em 2010, Machado esclareceu, dentre outros assuntos, como ocorre a construção de suas histórias:

Em um de seus livros, “Beijos Mágicos”, voltado para o público infantil, Ana Maria Machado apresenta, por meio de uma história divertida e contagiante, uma temática bem atual: a separação dos pais. 

A intrigante história inicia-se descrevendo o contexto em que se encontra Nanda, personagem principal da trama: morando com o pai e a avó, passando os fins de semana na casa da mãe – “Nanda tinha duas casas. Numa, ela passava quase todos os fins de semana com a mãe. Na outra, ela morava com o pai e a avó” (MACHADO, 1996). A princípio, notamos que aborda um contexto, relativamente, moderno, no qual a filha permanece com o pai após a separação dos pais, pois há até pouco tempo atrás, os filhos acompanhavam as mães em situações semelhantes. Ou seja, essa história vivenciada por Nanda expressa uma “sociedade em que a hegemonia da família nuclear é ameaçada” (OLIVEIRA, 2008, p. 226). 
Em seguida, a autora descreve a rotina da menina: o pai a acordava, dava café da manhã e a levava para o colégio, depois disso, a avó a buscava e a levava para brincar e andar de velocípede na praça. A noite, seu pai era quem a botava para dormir, sempre contando histórias que acabavam com o clássico “felizes para sempre”. Nesse momento, Ana Maria Machado destaca que Nanda “sabia que o pai e a mãe resolveram que para serem felizes para sempre era melhor não ficarem juntos”. Podemos notar que a garota é diferente das demais crianças, pois o esperado nessas situações é a falta de conformidade por parte da criança ao ver sua família se “despedaçar”. No entanto, Nanda é uma garotinha conformada com a situação em que vive, transformando sua realidade em um conto de fadas influenciada pelas histórias que seu pai lhe contava antes de dormir. Podemos destacar que Nanda é uma garota socialmente “bem relacionada”, convive naturalmente com a questão da separação, mesmo utilizando o “fantástico” para compreender e organizar sua realidade. Oliveira (2008, p. 226) defende que “Nanda não parece lutar contra esta situação, aparentemente bem resolvida para ela, e procura ver o lado positivo desta realidade, sentindo-se amada pelos pais, cada qual a seu tempo”. Ou seja, Nanda quebra a expectativa e aceita a situação dos pais, alegando sentir, apenas, “muita pena”, mas ser feliz para sempre vivendo como está, ora com o pai, ora com a mãe.
Machado compara Nanda com outras princesas dos contos de fadas: Branca de Neve, Rapunzel, Cinderela e a Bela Adormecida; e o pai da garota é comparado a um príncipe: “muito bonito e carinhoso”. Nesse momento, há uma mudança no comportamento dos personagens, pois o pai começa a contar as histórias mais rápidas e Nanda estranha esse comportamento, sente falta da dedicação anterior. Diante dessa situação, podemos notar uma pequena, mas relevante, mudança de comportamento do pai, agora com uma namorada ele procurava dividir sua atenção e dedicação. A garota descobre que, em uma das noites, o pai a colocou para dormir e depois saiu. No dia posterior, ela constatou que ele foi jantar com uma amiga. Nesse instante, podemos perceber que há, por parte de Nanda, um “sentimento de posse quando ela percebe que o príncipe não é só dela” (OLIVEIRA, 2008, p. 228). Em certo momento, o pai de Nanda afirma que a garota devia conhecer a Bebel, pois ela era “linda, alegre, um amor...”. Nanda, contudo, passa a ver a futura madrasta como o oposto do que o pai descreu, como uma bruxa. 



Fica evidente, portanto, que a garota não aprova a nova relação do pai, dentre outros motivos, por sentir a sua “estabilidade” ameaçada. Nesse momento observamos uma mudança no comportamento de Nanda, antes uma garota doce, agora uma criança com uma tendência possessiva pelo pai, talvez involuntariamente, mas que faz o leitor, que, provavelmente, é uma criança com a mesma idade da protagonista, refletir sobre o seu próprio comportamento e situação de relação com os pais, que podem ou não serem separados.

Notamos, portanto, que, a partir desse momento, a garota passa a “organize [ar] a realidade através da fantasia, compreendendo o mundo pela ótica do imaginário” (BETTELHEIM, 1979, apud, OLIVEIRA, 2008, p. 227), Nanda proporá soluções/explicações baseadas nos contos de fadas que perpassaram sua infância. Ela julga que Bebel lançou um feitiço para seu pai e, por isso, ele não consegue perceber que ela é uma bruxa. Quando conta para sua mãe o ocorrido e ela defende Bebel, Nanda acredita que a futura madrasta enfeitiçou também a mãe. Esse posicionamento da mãe está “evidenciando a diferença entre a visão do adulto e da criança sobre o mesmo fato” (OLIVEIRA, 2008, p. 229). A separação vista como um fato que ocorre somente com os adultos fornece uma perspectiva diferente para a criança, enquanto a Mãe acredita que o seu ex-marido tem que ser feliz com um novo amor, nossa protagonista vê esse fato como uma bruxaria, não entende o porquê de sua Mãe não concordar com suas palavras.
No desenrolar da história, tanto a mãe da menina, quanto o pai se casam. Desse modo, Nanda vai morar com mãe e inverte os papéis: passava a semana com a mãe e nos fins de semana ia para casa do pai “vigiar” Bebel. Segundo Oliveira (2008, p. 229), “Enquanto Bebel era apenas a namorada do pai, Nanda levava a situação como podia, no entanto, quando ela se torna a madrasta de verdade, a menina passa a morar com a mãe”, revelando um repúdio da garota perante o novo relacionamento do pai.
Entretanto, a história dá uma reviravolta. Em um dos fins de semana na casa do pai, Nanda fica sozinha com a madrasta, que está grávida. Esta, buscando uma aproximação com a garota, permite que ela ande de velocípede dentro de casa, ação proibida naquele local. Nanda acaba caindo e se machucando, fato que ocasiona uma “reconciliação” entre as duas: Bebel a socorre do tombo com muita dedicação e carinho, atitudes que levam Nanda a olhar para a madrasta com outros olhos (mesmo sem admitir isso explicitamente), essa atitude maternal de Bebel, permite que Nanda veja que ela quer ser mais que uma “madrasta”, quer ser uma amiga, companheira, que na ausência de sua mãe cuidará dela com tanto carinho quanto a mãe. Assim, a menina dorme nos braços da madrasta e esse “sono simboliza o amadurecimento e é nele que o processo de aceitação da madrasta evolui” (OLIVEIRA, 2008, p. 230). Para a aceitação acontecer plenamente, foi necessário um fator grandioso para Nanda. Um tombo de velocípede foi a “brecha” que faltava para a aproximação da madrasta, assim, ambas tiveram um momento único que proporcionou um laço de carinho entre elas.
Após esse momento, o pai e a avó chegam e Bebel sente que é hora do bebê nascer. No hospital, o pai pega Nanda no colo e coloca o recém nascido no colo dela, ele começa a chorar e Bebel sugere que Nanda o beije. Por meio dos beijos dela o bebê encerra o choro. Desse modo, com o nascimento do irmãozinho e com as novas situações vivenciadas, Nanda consegue aceitar a madrasta. É notório nessa história que “A partir de um problema real, Nanda busca na fantasia a resolução para a dificuldade de aceitar a nova realidade imposta” (OLIVEIRA, 2008, p. 231).
Vale destacar, para finalizar, que os personagens do pai e da mãe não são nomeados. Desse modo, assim como destaca Oliveira (2008), não remetem à pessoas específicas e são lugares que podem ser ocupados por qualquer pessoa, pois a história condiz com a realidade de diversas garotas e garotos que mantém duas famílias,  pais e mães separados. Na realidade que vivemos, a separação é um tema rotineiro em boa parte das famílias. Percebemos que ao retratar essa temática em um livro infantil, Ana Maria Machado busca uma aproximação e aceitação por parte das crianças que o leiam. A escritora retrata de maneira “singela” uma questão que para muitas crianças é motivo de lágrimas e problemas, destaca que uma família (pai e mãe) quando amam seus filhos a questão da separação não altera esse amor. E mesmo quando ambos constroem uma nova família, os filhos do primeiro relacionamento continuam a serem amados pelos seus pais.
Machado, por meio de um livro infantil, consegue tocar em um assunto bastante delicado sem perder de foco o principal: seu leitor. Esse leitor consegue transportar essa situação para sua vida real e identificar soluções para uma questão que antes poderia ser bastante complicada de ser resolvida. 
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Referências:
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MACHADO, A. M. Beijos Mágicos. São Paulo: FTD, 1996.
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GT - 3 - Literatura e idelogia

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