Abrindo caminho - ganhador do "Hans Christian Andersen", prêmio máximo da liteartura infantil mundial - é um dos (raros) livros de literatura infantil em que texto verbal e o texto imagético - ou seja, poesia e ilustração - se casam tão perfeitamente que um não pode viver sem o outro, não sendo justo dizer que é uma obra apenas literária, ou seja, apenas de Ana Maria Machado. Mas é o que acontece de modo geral com as obras de literatura infantil, não sendo diferente neste caso. Basta procurar nos catálogos de editoras e veremos que a obra é creditada a ela, às vezes nem sequer citando-se o nome da ilustradora. Esta percepção da obra está na própria capa (que vemos acima), onde o nome de Ana Maria Machado aparece em destaque, estando o nome de Elisabeth Teixeira em segundo plano, apenas como ilustradora. É importante deixar claro que não estou afirmando que há desconsideração com o trabalho do ilustrador, o foco é outro: trata-se de problematizar as categorias de autoria e gênero. Há obras de literatura infantojuvenil em que as imagens não são apenas ilustrações do texto verbal, pois complementam este, ou mais: ambos juntos criam um texto que é ao mesmo tempo verbal e visual. Pergunto: sendo verbovisual será apenas literatura? ou será um outro gênero, assim como os comics e o videoclip?
Em Abrindo caminho, a poesia do texto verbal ganha dimensões significativas imensas quando consideradas as imagens que lhe acompanham. Elas vão muito além da função referencial, meramente ilustrativa, ou da função expressiva, normalmente utiizada para dar maior expressão aos sentimentos do personagem.* Além da função poética que valoriza a imagem enquanto arte, as ilustrações de Abrindo caminho estabelecem significações novas na medida em que potencializam e materializam a intertextualidade (o que Juliana Medeiros** denomina de links para hipertextos) existente na poesia de Ana Maria Machado. Veja-se o exemplo que segue:
Se considerarmos o texto verbal (o verso) isoladamente, saberemos que "No meio do caminho de Tom tinha um rio", ou seja, que há um personagem chamado Tom e que no seu caminho há um rio, ou seja, "um curso de água natural, de extensão (...) considerável, que se desloca de um nível elevado para outro mais baixo, até desaguar no mar, num lago ou noutro rio" (conforme o Aurélio) que, no fim da viagem, deverá desaguar no mar... O verso não informa que Tom possui um violão e que o rio pode ser mar, ou mesmo a cidade do Rio de Janeiro - o que podemos deduzir da ilustração. Também não informa que este Tom (apelido, que é mais genérico do que um nome comum) pode ser o Tom Jobim, famoso compositor da MPB - e, portanto, uma pessoa única e especial. A ilustração diz mais do que o verso. Ele sozinho tem autonomia, mas não informa tudo isso ao leitor. Perde valor se considerado sozinho? Não. A imagem perde valor sem ele? Também não. São dois níveis textuais/narrativos correndo lado a lado. A mesma leitura vale para a página abaixo, em que o genérico Carlos do verso é, para o leitor adulto e ilustrado, o poeta Carlos Drummond de Andrade.
As relações apontadas estão inscritas no texto verbal através de alusões que podem ser reconhecidas pelo leitor adulto e/ou culto através de inferências se ele considerar o nome genérico do personagem Dante. Para a criança, este nome será apenas raro, mas é tal raridade que, para o adulto (ou aquele jovem informado) funcionará como chave de leitura para o poema, abrindo caminho (ou seja, legitimando suas inferências) para este leitor considerar que estes Tom, Carlos e Dante não são pessoas anônimas como nós, mas os artistas Tom Jobim, Carlos Drummond de Andrade e Dante Alighieri, os quais têm em comum serem artistas da palavra e do verso; serem poetas, enfim.
Outros exemplos de como a ilustração confere uma dimensão artística tão grande à obra que, sem ela, não é a mesma, são as das páginas 34-35 e 36-37 (todas as ilustrações são de página dupla, aspecto importante da diagramação), em que se apresentam imagens urbanas (que aludem à cidade do Rio de Janeiro, visto a presença das águas e de morros, que lembram o "Pão-de-açúcar") com personagens e motivos da narrativa nela inseridos, devendo ser encontradas no meio do caos urbano, assim como se faz no jogo do "Onde está o Wally ?". Na primeira (p. 34-34), o leitor poderá encontra a "Livraria Alighieri" ao lado de uma "Agência de viagem". Quase em primeiro plano, próximo ao centro, vê-se um chinês de bicicleta corregando uma plaquinha nas costas onde se lê "Lavanderia Shangai" . No canto inferior direito, o leitor encontrará a "Banca do Cristóvão. Na ilustração das próximas páginas (p. 36-37), quase no centro está o "Bar do Tom" e passando à frente vê-se o caminhão das "Mudanças Oeriente". Estas páginas, muito mais do que a função referencial, apresentam as funções estética e lúdica, constituindo realmente um jogo para o leitor divertir-se.
Para encerrar, um outra outra ilustração exemplar é a da menina lendo um livro ao lado de uma estante (p. 12-13), na medida em que o livro representado é o próprio livro em questão. Deduzimos isto pois a imagem desenhada nele corresponde à ilustração das páginas anteriores (p. 10-11). O leitor é levado - pelo procedimento de mise en abîme - a mergulhar no texto e a se reconhecer no lugar da menina desenhada nele. Ainda: nas estantes veem-se livros com autores ("Drummond") e títulos ("Música", "Antologia poética", "Bossa Nova", "Divina Comédia", "Poesia", "Conto de fadas") que nos remetem aos personagens da obra e à literatura, servindo de link para o leitor sair dela para outras obras. Além de ilustrar o texto verbal, a imagem novamente tem função lúdica, se apresentando como jogo. Além de divertir e entreter, tem uma função metanarrativa/metalinguística que é educativa, servindo de chave para o pequeno leitor abrir os seus caminhos no mundo através da leitura. Ao final, é possível que ele possa sentir no ato de ler o gosto de viajar e, assim, perceber que a leitura também é uma viagem...
Para encerrar, um outra outra ilustração exemplar é a da menina lendo um livro ao lado de uma estante (p. 12-13), na medida em que o livro representado é o próprio livro em questão. Deduzimos isto pois a imagem desenhada nele corresponde à ilustração das páginas anteriores (p. 10-11). O leitor é levado - pelo procedimento de mise en abîme - a mergulhar no texto e a se reconhecer no lugar da menina desenhada nele. Ainda: nas estantes veem-se livros com autores ("Drummond") e títulos ("Música", "Antologia poética", "Bossa Nova", "Divina Comédia", "Poesia", "Conto de fadas") que nos remetem aos personagens da obra e à literatura, servindo de link para o leitor sair dela para outras obras. Além de ilustrar o texto verbal, a imagem novamente tem função lúdica, se apresentando como jogo. Além de divertir e entreter, tem uma função metanarrativa/metalinguística que é educativa, servindo de chave para o pequeno leitor abrir os seus caminhos no mundo através da leitura. Ao final, é possível que ele possa sentir no ato de ler o gosto de viajar e, assim, perceber que a leitura também é uma viagem...
Comme promis, voilá la leçon !
Prof. Marciano Lopes
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* A fundamentação teórica para a análise encontra-se no artigo A relação entre imagem e texto na ilustração de poesia infantil - de Luís Camargo.
:** Ver os artigos A ativação dos links no processo de leitura dos hipertextos & Entre links e plugs: o leitor contemporâneo na rede hipertextual - ambos de Juliana Pádua Silva Medeiros.
alguém já leu esse livro?
ResponderExcluirAcabei de ler e fiquei encantada! A análise deste site é muito boa.
ResponderExcluirSim. Eu o declamei em um curso a pedido da monitora sem fazer uma leitura prévia. Foi no curso do SEFE. Enquanto o lia me deliciava com os personagens que se apresentavam diante de mim ao relacioná-lo com grandes homens de nossa história.Foi amor a primeira vista! Quero o apresentar para meus alunos.
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