Dando continuidade à análise das músicas da peça Os
saltimbancos, trazemos como conteúdo dessa postagem algumas considerações
acerca da música A Galinha, de composição de Enriquez, Bardotti e Chico
Buarque. Segue abaixo um vídeo em que Ana Cláudia Padilha interpreta "A galinha":
A Galinha
Todo ovo
Que eu choco
Me toco
De novo
Todo ovo
É a cara
É a clara
Do vovô
Que eu choco
Me toco
De novo
Todo ovo
É a cara
É a clara
Do vovô
Mas fiquei
Bloqueada
E agora
De noite
Só sonho
Gemada
Bloqueada
E agora
De noite
Só sonho
Gemada
A escassa produção
Alarma o patrão
As galinhas sérias
Jamais tiram férias
"Estás velha, te perdôo
Tu ficas na granja
Em forma de canja"
Alarma o patrão
As galinhas sérias
Jamais tiram férias
"Estás velha, te perdôo
Tu ficas na granja
Em forma de canja"
Ah !!! é esse o meu troco
Por anos de choco???
Dei-lhe uma bicada
E fugi, chocada
Por anos de choco???
Dei-lhe uma bicada
E fugi, chocada
Quero cantar
Na ronda
Na crista
Da onda
Na ronda
Na crista
Da onda
Pois um bico a mais
Só faz mais feliz
A grande gaiola
Do meu país
Só faz mais feliz
A grande gaiola
Do meu país
Com
rimas que se alternam entre emparelhadas e alternadas, com palavras de fácil
compreensão e colocando como centro de autoria do discurso a galinha, um dos
quatro animais protagonistas do drama Os
saltimbancos, a música A galinha
figura em um primeiro momento como uma produção tipicamente infantil. Entretanto,
lembremos, caro leitor, que não só estamos tratando de produções feitas no
período da ditadura, em que a repressão e a censura se faziam da ordem vigente,
como estamos falando de Chico Buarque, autor de inteligência e sensibilidade
ímpares no processo de criatividade. Desse modo, é preciso aprofundar nosso
olhar para algumas relações que se apresentam no nível do não dito, a fim de
realizar algumas inferências que nos permitam chegar mais perto de uma
compreensão significativa desta composição.
Atentemos
inicialmente para a escolha do “narrador” da história em questão, ou melhor, da história relatada na canção. Mesmo se tratando de um texto fabular, em que os animais
aparecem como protagonistas dos diálogos e das ações, percebemos que a escolha
do personagem a partilhar as ideias presentes na letra da música não foi
casual. Dentre os personagens, o único animal que fornece alimento, de modo
direto, é a galinha (seja por meio de sua própria carne ou do ovo que a mesma
bota). Sabemos, segundo algumas abordagens psicológicas que o corpo é instância inviolável
do ser, aquilo que possui de exclusivamente seu. Desse modo, a galinha apareceria como um
dos personagens mais estigmatizados, o que justificaria a construção da
composição em tons de lamento e desabafo.
No
início da canção a galinha, que canta a música, diz: "Todo ovo/ Que eu choco/ Me
toco/ De novo/ Todo ovo/ É a cara/ É a clara/ Do vovô". Quando verificamos o uso
feito pela galinha do verbo tocar, precisamos ir além do que o significado
tradicional com o qual estamos acostumados, ligado as questões sensitivas do
tato. Temos aqui a multiplicidade dos sentidos em ação, trazendo para o texto a
possibilidade de fazer remissão também à gíria “tocar”, em que o verbo aparece
agora pronominalizado, ganhando como definição o "cair em si" sobre alguma coisa. No caso do texto analisado, "cair em si" sobre o fato de que todo o ovo que ela choca não
vinga, ou seja, não vira um filho seu – um pintinho com as características
hereditárias de seus ancestrais (o vovô) -, mas sim um ovo para consumo.
Na
segunda estrofe, a galinha afirma que ficou bloqueada em relação à produção de
ovos, e pela noite, ao invés de chocar, ela só sonha com gemadas. Essa estrofe
parece ter dado humanização aos “sentimentos animais”, como se a galinha ao
pensar que todos os ovos que bota fossem parar em gemadas, ficasse chocada e,
por isso, bloqueada, ou seja, incapaz (por razões psicológicas) de botar os ovos. O termo bloqueada, aliado a simbologia do objeto ovo, pode
também remeter ao cerceamento da liberdade, e, consequentemente, da vida por
conta da repressão vivenciada nos anos de ditadura militar.
Passando
a terceira estrofe do poema, temos uma remissão crítica aos processos de
reificação e exploração do trabalho e ao fetiche da mercadoria, muito comentados
nos trabalhos e abordagens socialistas de Lucáks e Goldman, em que o ser passa a
ter seu valor de uso e de troca, tornando-se descartável quando sua produção
não mais se concretiza. Da mesma forma, se um animal não produz com sucesso –
se a galinha não bota mais como antes – ele é vendido ou abatido para virar
alimento – no caso da galinha, uma canja -, e assim ainda gera lucro ao seu
“dono”. A parte da canção “As galinhas sérias/ Jamais tiram férias” carrega
forte carga de ironia, pois pauta-se em um grande oximoro. Para atender as
necessidades do comércio, as galinhas produzem ovos durante todo o ano.
Entretanto, quanto mais trabalham, sendo “mais produtivos”, mais se cansam, se
degradam, passando a um estado de improdutividade. Tal reflexão nos remete
diretamente ao estilo de produção fabril iniciado no final do século XIX, em
que os funcionários eram submetidos a longas e penosas jornadas, quase
ininterruptamente, a fim de contribuir fisicamente com seu quinhão para os
lucros de quem tivesse a posse dos meios de produção.
Ressaltamos
também um aspecto mais linguístico verificado na letra da música. A repetição
dos pontos de exclamação e interrogação evidenciam que a galinha furiosa
reclama ao seu “dono” pelo troco que ele a dá – a morte – por anos de choco,
produção e lucro: Ah !!! é esse o meu troco/ Por anos de choco???/ Dei-lhe uma
bicada/ E fugi, chocada”. Nas duas últimas frases percebemos o quão frágeis são
os animais em relação ao homem, a única coisa que uma galinha podia fazer era
bicar o homem, enquanto este pode matá-la facilmente.
Mais
uma vez a galinha é humanizada, pelo fato de se expressar que ela queria
cantar, enfim ser livre e feliz. E a canção termina com mais uma profunda
crítica ao dizer que “um bico a mais/ Só faz mais feliz/ A grande gaiola/ Do
meu país”, ou seja, um animal a mais é lucro a mais. Do mesmo modo podemos
perceber uma transferência de sentido, no qual o bico simboliza um homem, um
homem a mais num país, caracterizado como gaiola, é só mão de obra a mais. A
gaiola é um elemento de forte correlação simbólica com aprisionamento, com uma
visão fechada de mundo, com o conservadorismo que possibilita a visão, mas
engessa a ação daquele que está dentro dela.
Link para as outras análises das canções de Os saltimbancos:
Teatro, música e poesia: Os saltimbancos, de Chico Buarque
Um dia de cão : latidos e lamúrias em Os saltimbancos
Acomodação e consciência: as faces de um jumento em "Os saltimbancos"
GT 4 - Teatro e música infantojuvenis
Link para as outras análises das canções de Os saltimbancos:
Teatro, música e poesia: Os saltimbancos, de Chico Buarque
Um dia de cão : latidos e lamúrias em Os saltimbancos
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GT 4 - Teatro e música infantojuvenis
Excelente postagem! Ótima análise sociológica (e marxista) da canção "A galinha". Parabéns! (prof. Marciano)
ResponderExcluirNão existe análise marxista ou capitalista, ou qualquer outro ISTA. O que há é uma análise mais acertada, como é o caso desta, e outras mais equivocadas. Por pressuposto, são todas incompletas, posto que sempre há algo a ser acrescentado ou que possa ser discutido.
ResponderExcluirExiste sim, marxismo é ciência, e existe análises que aplicam ciência, como está e análises que não a aplicam, que são mera ideologia.
ExcluirDiscordo totalmente, pois em última análise o método científico EXIGE que TESTES sejam possíveis e passíveis de reprodução. Se você for usar uma definição mais séria e objetiva do que seria ciência, uma análise marxista não seria ciência, a não ser que permitisse algum tipo de experimento. Sinto muito, mas se analisarmos de maneira crítica, isso não é ciência. Recomendo que estude mais sobre um tema antes de sair espalhando coisas na internet, tenha um bom ano e espero ter sido útil.
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