segunda-feira, 26 de novembro de 2012

De que cor é a sua ferrugem?


       

     Não raramente, a literatura infanto-juvenil sofre o preconceito e a depreciação de leigos, críticos e até mesmo, de escritores consagrados pelo cânone da literatura tradicional por ser vista como uma categoria que abrange meras "historinhas para crianças". Contrariando qualquer pensamento que menospreze as obras infantojuvenis, "Raul da Ferrugem Azul" foi escrito por Ana Maria Machado em 1979, no período que compreendeu a ditadura militar brasileira. As 47 páginas foram divididas em 8 capítulos nos quais o narrador conta a história de Raul, um menino que um dia se desespera ao perceber que sua pele está sendo coberta por manchinhas azuis. 

         As primeiras manchas apareceram no braço de Raul logo após uma briga que ele presenciou entre dois meninos na hora do recreio. Márcio, um típico “valentão” que costuma praticar bullying contra as crianças da escola, quebra os óculos de Guilherme e se recusa a pedir desculpas. Raul assiste à cena com muita raiva e sente vontade de bater em Márcio para defender o amigo, entretanto, resolve se resignar e acaba acumulando dentro de si toda a raiva que sentiu e que não conseguiu extravasar.  

Sem sucesso, Raul tentou remover as manchas azuis com todos os produtos de limpeza que encontrou em casa, chegando até mesmo a passar um dia inteiro no sol por pensar que se tratava de um bolor. Mais tarde, o próprio menino fez o diagnóstico: era ferrugem, ferrugem azul. A ferrugem começou a se espalhar pelo corpo paulatinamente. Certo dia, Raul estava voltando do futebol com os amigos e viu um homem estourar com o cigarro os balões coloridos de um menino que trabalhava como ambulante. Raul sentiu muita raiva e até pensou em correr até o menino para ajudá-lo, mas não conseguiu sair do lugar. 

Assim, a inércia de Raul perante as situações que lhe geravam indignação foi alastrando a ferrugem azul pelo corpo do menino. A ferrugem surge na garganta de Raul quando ele ouve, completamente mudo, os comentários extremamente racistas de alguns de seus amigos que se referiam aos negros como pessoas que devem sempre gerar suspeita e medo nos brancos. Mais uma vez Raul ficou furioso. Mais uma vez ele quis gritar aos amigos que eles estavam errados. E mais uma vez, permaneceu imóvel.

Um dia, em uma conversa com Tita - a empregada doméstica da casa que sempre contara muitas histórias sobre o Preto Velho da Montanha - Raul decide ir até a favela em busca do Preto Velho e de alguma informação que possibilite a remoção da ferrugem. No dia seguinte, ao chegar na favela, Raul presenciou uma grande confusão. Uma menina muito zangada gritava para defender um garotinho que teve sua pipa roubada por garotos maiores do que ele. Raul acompanhou com muita atenção o discurso da menina e se assustou quando ela disse que não levava desaforo para casa para não ficar enferrujada. Ao conversar com a “menina briguenta”, que na verdade se chamava Estela, Raul consegue uma companhia até a casa do Preto Velho. 

O menino chega até a casa do Preto Velho crendo que seu problema será solucionado e sai de lá muito decepcionado ao ouvir o velho sábio dizer que cada um de nós só consegue acabar com a própria ferrugem por conta própria e que ele, portanto, não poderia ajudar. No caminho de volta, ao conversar com Estela sobre sua ferrugem, Raul descobre que ele não era o único a sofrer com as manchinhas que estampavam sua pele e que até mesmo Estela, que era tão diferente dele, já havia sido perseguida por uma ferrugem amarela. Ao perceber que estava ficando tarde, Raul se despede de Estela e pega o ônibus de volta para casa prometendo pensar em tudo aquilo que haviam conversado.

A primeira “aventura de desenferrujamento” de Raul acontece ainda dentro do ônibus. Em uma das paradas, uma senhora que carregava peso acaba demorando a descer os degraus e é desrespeitada pelo motorista que, acelera o motor e a trata de forma depreciativa. Raul fica muito irritado com a situação e, pela primeira vez, manifesta sua raiva ao discutir com o motorista para defender a velha senhora. A ação teve resultado imediato e a ferrugem que manchava a garganta de Raul simplesmente desapareceu. As outras partes do corpo continuavam manchadas, mas Raul já não se preocupava. O menino sabia que agora seria uma simples questão de tempo para que o processo de “desenferrujamento” se desse por inteiro. 

Ao narrar a história de Raul, a autora narra também a história de muitos outros meninos, meninas, homens e mulheres que vão se enferrujando cada dia mais por permanecerem impassíveis em circunstâncias que deveriam ser de embate e enfrentamento. A inércia mediante situações de injustiça é um assunto extremamente pertinente à qualquer ser humano que conviva com as opressões cotidianas que movem as engrenagens de toda e qualquer sociedade. Assim, o livro de Ana Maria Machado não deve ser limitado ao viés puramente infantojuvenil uma vez que configura uma leitura frutífera e interessante para pessoas de diferentes idades.

O livro, que ganhou o prêmio de “Melhor do Ano” da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil em 1980, chegou a ser rejeitado por oito editoras que temiam represálias da censura militar uma vez que sua temática poderia ser vista como uma metáfora do momento histórico que o país vivia na época. O sentimento de Raul traduz o sentimento de milhões de outros brasileiros que viveram a arbitrariedade da ditadura militar brasileira. O furor reprimido do menino enferrujado pode ser facilmente comparado ao “grito contido” que Chico Buarque de Holanda cantou em “Apesar de você”, no auge da censura militar. Assim, pode-se dizer que Ana Maria Machado conseguiu, com maestria, unir o universo lúdico e abstrato de uma criança ao concreto universo dos adultos, fazendo de seu livro um clássico cuja temática é atemporal.

Segue abaixo um curta metragem inspirado no livro “Raul da ferrugem azul” de Ana Maria Machado:



Referências

MACHADO, Ana Maria. Raul da ferrugem azul. Ilustrações de Rosana Faría. São Paulo: Richmond Educação, 2009.


GT 2: Autores consagrados

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