Enredo e comentário
crítico
Como
já explorado anteriormente neste espaço, o livro Historinhas malcriadas de Ruth Rocha
apresenta um apanhado de quatro histórias ("O dia em que eu mordi Jesus
Cristo", "Apanhei assim mesmo...", "Bom
pra tosse", "O dia em que meu primo quebrou a cabeça do meu
pai"). Trataremos aqui da segunda: “Apanhei assim mesmo...”. No início, ao
lermos o título do conto, nos deparamos com um assunto que mexe com a opinião
pública, pois entramos na discussão sobre incluir, ou não, castigos físicos na
criação das crianças. Ao nos depararmos com este título, fazendo uma ligação
com o título do livro, pressupomos que algo errado há de acontecer.
Ao
iniciar a história, o narrador, sem delongas, já põe o leitor a par do modo de
ser de seu pai, “Precisa de ver como o
meu pai é bravo! Ele nem pergunta muito...Qualquer coisa e a gente já leva uns
safanões”. Logo em seguida, diz que sua madrinha é quem sempre o livra das
travessuras por ele cometidas, dando a estas uma certa ênfase: “E quando eu apronto, eu apronto, mesmo!”. Após isso, ele conta que, certo dia, um homem
fora visitá-los e, ao ir embora, esqueceu um maço de cigarros. O menino nunca
havia fumado e sofre chacotas de seus colegas de classe por isso. Essa atitude
desperta no menino o desejo de fumar, nem que fosse uma única vez.
A partir
de então, observamos que o conto de Ruth Rocha aborda uma temática polêmica e
atual: o tabagismo na adolescência. O garoto, após encontrar os cigarros e
contextualizar o leitor, vai à cozinha, pega uma caixa de fósforos e, de forma
discreta, se dirige aos fundos da casa, sobe no muro e começa a fumar. A
princípio, estranha aquilo, acha ruim, mas insiste e, como já haviam lhe dito
que “no começo é ruim mesmo”, procede com a ação. Foi enjoando, mas continuava.
Um fato
curioso é observado, na sequência, pois ele faz referência ao fato de estar
seguindo o que seu pai fazia. Vemos uma nítida correspondência com fatos
sociais: crianças recebem influências dentro do ambiente familiar. Sabemos que
estudos comprovam que a principal influência que uma criança pode ter para a
entrada no tabagismo é ter pais ou familiares próximos que possuam esse hábito,
e o simples fato de pedir às crianças que peguem o maço, a caixa de fósforos,
ou até mesmo acender o cigarro, aumenta cerca de 65% as chances dos filhos
fumarem.
Após
fumar compulsivamente, o garoto cai do muro, na casa de Dona Esmeralda, que, ao
vê-lo no chão, com vários cigarros ao seu redor, pressupõem o que lhe havia
acontecido e, por conhecer o pai do jovem, resolveu contatar a madrinha do
menino. Ambas o socorreram, jogando-lhe água no rosto para que ele acordasse. Ao
acordar, devido ao enjoo ocasionado pelos cigarros e pela falta de costume com
a prática, o menino vomitou. Sua madrinha, assustada, devido ao cheiro de
cigarros que exalava do menino, sabia que, se ele voltasse para casa naquela
situação, o pai lhe aplicaria uma bela surra. Resolveram, então, escovar a boca
dele, mas nada lhe retirava tal cheiro, até que Dona Esmeralda veio com um copo
de pinga da cozinha dizendo que a melhor coisa para tirar cheiro de cigarro era
pinga; assim o garoto fez.
Com isso,
o jovem retornou para a casa, onde estava seu pai entretido com a televisão, ao
passar por trás deste a caminho do quarto, o pai sem nem olhar para o menino o
chamou e aplicou uma surra por sentir o cheiro de pinga no menino.
Percebemos, desta forma, a inconsequência das duas mulheres,
que não pensaram nos efeitos da ingestão de bebida alcólica pelo garoto. É
nítido, também, a inocência da criança, em
tentar imitar o pai, sem se dar conta de que seu organismo é mais frágil que de
um adulto, e em querer fumar para se igualar aos seus “amigos”. Remete-se,
assim, a uma afirmação de Khéde (1986, p. 20) de que o personagem criança, “quando
aparece, está ligado à representação da fragilidade e da inocência (embora
plena de bom senso)”: o menino é frágil por aceitar as provocações dos amigos e
inocente por acreditar que conseguiria fumar como seu pai. Entretanto, ele
possui bom senso, pois tem consciência de que o que está fazendo não é correto,
tanto que faz escondido.
Ressaltamos, ainda, a violência do pai, que sequer pensa em
dialogar com o filho, e recorre ao ato extremo de bater sem medir as sequelas
físicas e psicológicas que, provavelmente, irá deixar no garoto. Isso propicia
uma interpretação crítica da obra, ou seja, retrata algumas realidades sociais
que, infelizmente, são recorrentes nas famílias, destacamos, dentre elas, a
violência gratuita e o consumo precoce do cigarro.
Questões ideológicas e análise
O conto “Apanhei assim mesmo...” trata-se de um texto
narrativo, pois apresenta um narrador que conta a história (real ou fictícia),
nesse caso, um narrador autodiegético, que é o protagonista (o menino, que não
recebe nome) que narra as suas próprias vivências/aventuras. Desse modo, todo o
enredo é apresentado sob a perspectiva do garoto, que, ao nosso ver, apresenta
um grau mínimo de intrusão: ele narra as sequências narrativas, apenas
descrevendo uma peripécia praticada por ele, mas, em algumas passagens expressa
sua opinião (como em sua afirmação: E quando eu apronto, eu
apronto, mesmo!), ou faz afirmações que extrapolam a mera descrição (nessa
declaração, por exemplo, “Mas eu não parei, que ser homem não é mole!”). Com
isso, tem-se uma focalização narrativa interna/homodiegética, que, como já
afirmamos, deixa prevalecer o ponto de
vista de uma das personagens que vive a história.
No que diz respeito à ação, o leitor
tem conhecimento do destino final das personagens e a história apresenta
princípio, meio e fim. Entretanto, os questionamentos possibilitados pela
narrativa ficam em aberto, a critério da interpretação do leitor.
Os personagens do conto são planos, ou seja, superficiais em sua caracterização, pois são construídos em torno de uma só ideia ou
qualidade, sendo possível defini-los em poucas palavras. A madrinha é a
boazinha, que busca socorrer o afilhado, protegê-lo contra as maldades do pai.
Este é um conservador, intolerante, que busca resolver seus problemas com “uma
boa surra”. Já o garoto, apresenta traços de um garoto comum – que busca seguir
as tendências e corresponder ao que os garotos de sua idade fazem, por isso
resolve fumar; mas não é bem sucedido em sua tentativa e por isso volta para
casa como o “bom garoto” de sempre, mas apanha por algo que não fez, ou melhor,
não fez culposamente, pois seguiu o conselho da madrinha.
Sendo
assim, o garoto, por ser protagonista, é claro, é quem move as situações do
conto: ele encontra um problema (fumar, ao menos uma vez na vida) e busca
solucioná-lo. A princípio, consegue, pois, mesmo que escondido, fuma. Contudo,
por ser inexperiente e ingênuo, tenta imitar seu pai e fuma compulsivamente, o
que o leva ao desmaio e conduz a narrativa para o seu clímax (o que fazer para
esconder do pai o cheiro de cigarro?) e, consequente, desfecho (bochechar a
pinga e apanhar por isso).
Nesse
contexto, ressaltamos as palavras de Coelho (1997) que afirma
a
importância que se atribui, hoje, à orientação
a ser dada às crianças, no sentido de que, ludicamente, sem tensões ou
traumatismos, elas consigam estabelecer relações
fecundas entre o universo literário e seu mundo interior, para que se forme,
assim, uma consciência que facilite
ou amplie suas relações com o universo real que elas estão descobrindo
dia-a-dia e onde elas precisam aprender se situar com segurança, para nele poder agir (COELHO, 1997, p. 46).
Desse
modo, observamos que o conto “Apanhei assim mesmo...” proporciona uma relação
objetiva entre o contexto literário e contexto social, com o intuito de
conscientizar as crianças sobre as realidades/problemas sociais que são
recorrentes, apesar de muitas vezes ocultos, nos ambientes, em especial,
familiares.
Esse
conto apresenta um espaço físico, construído
através de ambientes vividos pelas personagens e ligado às características da
sociedade em que as personagens se inserem: a casa do garoto; os fundos da casa
- o muro - e a casa da Dona Eugênia. Já em relação ao tempo, notamos um flashback,
pois o garoto conta no presente (tempo da história) uma história que aconteceu
no passado (tempo histórico).
Considerações
finais
Nesse curto conto, a autora consegue, com humor,
trabalhar, de forma integrada e muito inteligente, temáticas polêmicas que
dizem respeito ao convívio da criança com sua família. Quando se trata de
histórias para crianças fica difícil abordar temas tão complexos e
polêmicos, mas Ruth Rocha, nesse texto, faz isso de uma forma tão suave que
possibilita o uso desse texto em sala de aula para a educação de jovens sobre
os males ocasionados por tais hábitos. Isso possibilita aos professores trazerem
para o ambiente escolar, de forma contextualizada, esses problemas sociais e
discutir com os alunos seus malefícios e conscientizá-los, formando cidadãos
críticos e conscientes sobre assuntos que cada vez mais cedo afligem as famílias
em todo o mundo.
Referências
Bibliográficas
COELHO, N. N. Literatura
infantil: teoria – análise – didática. São Paulo: Ática, 1997.
KHÉDE, S. S. Personagens
da literatura infanto-juvenil. São Paulo: Ática, 1986.
Acessados em 07/10/12
GT3 -
Literatura e Ideologia
kkkkk
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