Trecho do espetáculo "Os Saltimbancos", fruto do projeto "Teatro e Voz",
realizado por alunos do colégio Mackenzie no segundo semestre de 2009.
Mais informações:
O Jumento
Composição:
Enriquez - Bardotti - Chico Buarque
Jumento não é
Jumento não é
O grande malandro da praça
Trabalha, trabalha de graça
Não agrada a ninguém
Nem nome não tem
É manso e não faz pirraça
Mas quando a carcaça ameaça rachar
Que coices, que coices
Que coices que dá
O pão, a farinha,
feijão, carne seca
Quem é que carrega? Hi-ho
O pão, a farinha, o feijão, carne seca
Limão, mexerica, mamão, melancia
Quem é que carrega? Hi-ho
O pão, a farinha, feijão, carne seca
Limão, mexerica, mamão, melancia
A areia, o cimento, o tijolo, a pedreira
Quem é que carrega? Hi-ho
Quem é que carrega? Hi-ho
O pão, a farinha, o feijão, carne seca
Limão, mexerica, mamão, melancia
Quem é que carrega? Hi-ho
O pão, a farinha, feijão, carne seca
Limão, mexerica, mamão, melancia
A areia, o cimento, o tijolo, a pedreira
Quem é que carrega? Hi-ho
Jumento não é
Jumento não é
O grande malandro da praça
Trabalha, trabalha de graça
Não agrada a ninguém
Nem nome não tem
É manso e não faz pirraça
Mas quando a carcaça ameaça rachar
Que coices, que coices
Que coices que dá
Hi-hooooooooo
Jumento não é
O grande malandro da praça
Trabalha, trabalha de graça
Não agrada a ninguém
Nem nome não tem
É manso e não faz pirraça
Mas quando a carcaça ameaça rachar
Que coices, que coices
Que coices que dá
Hi-hooooooooo
Podemos ver nessa
música, tal como ocorre nas demais letras compostas para a peça Os saltimbancos,
um cuidado linguístico rigoroso por parte de Chico Buarque, conciliando
sonoridade, significação, ambiguidades (tão ricas para a semântica do texto e
tão necessárias ao momento vivenciado no país, sendo necessário concentrar e
condensar o conteúdo crítico nas entrelinhas dos textos).
Na peça, o jumento,
cansado de tanto trabalhar sem recompensa, decide fugir para a cidade, sonhando
trabalhar como músico. No caminho encontra o cachorro, desiludido com seu
antigo dono, por só lhe obedecer sem nunca receber nenhum tipo de reconhecimento.
O jumento vendo o cachorro como seu semelhante o convida para ir à cidade. Pouco
depois, ambos encontram a galinha, que também tinha fugido de um dono mau, e
mais adiante, a gata que não suportava mais viver presa. Assim, o jumento é
aquele que inicia o processo de revolução, e parte rumo à cidade em busca de
uma nova concepção, de uma nova chance, de um novo ideal.
Logo de início o
autor tenciona apresentar quem é o personagem de quem irá falar, ou seja, o
jumento. Para apresentá-lo, Chico Buarque, de modo muito sagaz, se utiliza de uma
construção que tange a duplicidade semântica. A canção apresenta o animal
jumento como não sendo o malandro da praça, com figura de destaque/esperteza, o
que pode implicar a leitura de que o termo jumento possui um valor de
adjetivação e conotação pejorativa, assim como o nome do animal “burro” constantemente
utilizado no nosso cotidiano.
No decorrer da
letra nos deparamos com a sentença “trabalha e trabalha de graça”. Valendo-nos
de uma abordagem marxista, podemos considerar que essa assertiva estabelece
diálogo direto com o conceito de mais valia, consistindo no lucro obtido pela
diferença entre o valor da mercadoria que se produz e a somatória dos gastos e
meios de produção. Na canção, o jumento pode representar o homem também
considerado uma mercadoria, fazendo parte dos meios de produção, assim, revela-se
a exploração e a subversão da condição humana.
Logo em seguida
temos uma sequência muito significativa “Não agrada a ninguém, nem nome não
tem, é manso e não faz pirraça”. A ausência de nomeação pode ser definida como
clara perda de identidade ou generalização. Isso é reforçado pelo fato de a história do jumento ser
narrada em terceira pessoa mostrando que o animal pode ser qualquer indivíduo
que trabalhe e seja explorado como ele.
Aproximando-se
novamente de uma análise marxista, temos que o indivíduo passa a ser meramente
um número a representar cifras e força de trabalho. Possível se faz também
ampliarmos um pouco o leque de interpretações e considerar que o cerceamento da
liberdade, característica marcante do período ditatorial, resulta em perda de
consciência, em alienação e, consequentemente, na ausência de uma identidade. A
mansuetude, originalmente postulada como virtude irmã da paciência, também
possui no texto seu significado transfigurado, correspondendo a um estado de
passividade indesejável. Não fazer pirraça compreende essa mesma passividade,. A ausência de reações, ou seja, de revoltas contra a ordem de repressão vigente, logo
assume na letra um valor disfórico. Entretanto, em
certa altura, há uma reviravolta na direção da descrição do jumento. A partir
da sentença “mas quando a carcaça ameaça rachar, que coices, que coices, que
coices que dá”, em que o indivíduo percebe que a sua posição está posta em
jogo, há uma mudança de postura, resultando em um enfrentamento, em uma
resposta ativa perante o caráter opressivo e violento. Dar coices assume um
valor eufórico, pois é a tomada de consciência do jumento. O ato de rebelar-se,
dando coices, aponta a afirmação da identidade do animal, mostrando seu modo de
defesa (assim como as bicadas da galinha). Ainda, percebe-se a tomada de voz pelo jumento
na canção, através do discurso direto, quando ele responde às questões sobre
quem faz o trabalho pesado, com as expressões onomatopeicas “hi-ho” e
“hi-hoooo” nas segunda e terceira estrofes.
Tais considerações
nos remetem a dois pontos distintos. O primeiro ponto a ser considerado é o
poder de superação. De um modo geral, o ser humano desconhece a força e o
potencial que tem até que seja colocado à prova, isto é, até que uma situação
extrema sirva como intermediária para que se possa vislumbrar aquilo que de
fato se pode fazer. O segundo ponto diz respeito à indiferença. Verificamos que
até esse trecho da canção o personagem é tido como alguém que se mantém alheio,
e que só toma alguma atitude quando a ausência de um posicionamento afetar
diretamente o seu estado. Diferentemente do ideal utópico de igualdade pregado
pelo socialismo, vemos, a cada dia, um avanço do lema “cada um por si, Deus por
todos”, em uma sociedade corrompida pela gana excessiva, pela valorização do
ter em detrimento ao ser, pela posse e o consumismo. Assim podemos considerar
que a música passa de um valor disfórico (de opressão) para um valor eufórico
(de ataque).
Em uma análise de
caráter mais abrangente, podemos ler esse texto musical como uma carta de
engajamento por uma sociedade mais justa, de modo a levar os indivíduos a refletirem sobre sua
condição alienada e abandonarem o estado passivo. Todos aqueles que se
encontram imersos na massa, levados ao sabor dos ventos, poderiam tomar para
si a conotação positiva do adjetivo jumento e, desta forma, poderiam lutar por mudar suas vidas para melhor.
Link para as outras análises das canções de Os saltimbancos:
Teatro, música e poesia: Os saltimbancos, de Chico Buarque
Um dia de cão: latidos e lamúrias em Os saltimbancos
A galinha de Os saltimbancos: uma análise marxista
GT4 - Teatro e música infanto-juvenil
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