Palavras, Palavrinhas
e Palavrões é mais
uma intrigante história de Ana Maria Machado, na qual ela usa do humor e da
inocência para criticar um tema recorrente na sociedade: a proibição de
palavras consideradas de baixo calão (vulgares), sem justificativa, que gera o
silêncio por parte do reprimido.
Enredo e comentário
crítico
O
livro inicia apresentando uma menina que gostava muito de palavras. Ela buscava
compreender o sentido delas, suas estruturas e seus significados. Contudo, como
não sabia a definição dos termos, ela usava palavras de baixo calão em
contextos não permitidos e seus pais a repreendiam por isso. A menina ficava
curiosa tentando entender como uma palavra pequena (de tamanho) pode ser
considerada um palavrão, ou como podia ora ser considerada um palavrão, ora não
(como “pinto”). Apesar de toda a repreensão, a menina persistia em usar as
palavras, inclusive, até criou um termo, para ser o nome de seu futuro irmão:
Cusfosfós (essa criação revela o conhecimento da menina sobre a língua e sua
curiosidade em compreender o funcionamento desse sistema).
Em
virtude da teimosia da garota, a mãe tenta explicar que palavrão corresponde a
um xingamento e não ao tamanho da palavra. Com isso, a menina expressa suas
dúvidas e a mãe perde a paciência. Dessa atitude deriva a repetição de “palavrões”
por parte da menina, pois não há uma orientação satisfatória.
Devido
a insistência da menina em permanecer falando palavrões (inconscientemente,
porque ela não sabia o significado), a família resolveu por pimenta na boca
dela. Isso foi ainda pior: com dor, ela falou uma série de palavrões, assim, os
pais resolveram levá-la ao médico (um orientador psicopedagógico). Lá ela teve
contato com uma série de palavras compridas; com medo de ter que repeti-las, ou
de falar alguma palavra que não devia, ela resolveu não falar mais nada.
Muitos
conflitos são gerados na intenção de fazer a menina falar, mas são inúteis. A
garota só volta a falar quando nasce Lúcia, sua irmã, pois a menina acredita
que a irmã formará uma bela dupla com ela uma vez que já nasceu falando uma
palavrinha que representa um palavrão (ela nasce “dizendo” nhém, nhém, e é
repreendida pela avó, que diz que “essa garota vai dar trabalho”).
Há
uma crítica ao uso das palavras, isto é, a obra retrata um preconceito social
referente ao uso dos vocábulos – enquanto para a menina representam uma
descoberta encantadora, para a sociedade é apenas uma ferramenta proibida em
alguns contextos. Em síntese, a família retrata o preconceito social e quebra
com as expectativas da menina que acabou de descobrir um
mundo mágico, mas ainda não sabe lidar muito bem com o uso dessas palavras,
palavrinhas e palavrões. Mesmo reprimida, ela revela sua rebeldia e não obedece às proibições da família, preferindo se calar. Ao fim, quando toma a palavra novamente, elabora planos para continuar usando palavrões. Segundo as palavras de Marisa Lajolo retiradas da contracapa do livro, a história é:
Enredada nos conceitos e preconceitos que
sobre a linguagem e seus usos manifestam os adultos, a menina da história
aprende que a linguagem é um espaço mágico e misterioso. Espaço de proibições e
tabus, mas também espaço em que cada um se torna dono das próprias falas e
sujeito do mundo que constrói com elas. Ferida pelas farpas do arame invisível
que na vida social separa as palavras que se dizem das palavras que não se
dizem, a menina da história acaba por descobrir, sozinha, que, nesta coisa de
palavras, todas são de todos. E que palavras, palavrinhas ou palavrões (mera
questão de ponto de vista e de contexto) são o único material de que cada um
dispõe para construir o seu texto.
Questões ideológicas e
análise
A
história de Ana Maria Machado apresenta um narrador em terceira pessoa,
caracterizado como heterodiegético, pois é uma entidade exterior à história e tem uma
função meramente narrativa, ou seja, de relatar os acontecimentos. Contudo, há uma
focalização onisciente devido ao fato do narrador ter conhecimento total dos
eventos acontecidos, inclusive descrevendo os pensamentos da menina: “Pensava
que ninguém gostava dela. Pensava que os pais preferiam que ela fosse um
menino, pra poder ser moleque de rua e dizer todos os palavrões que
soubesse...” (MACHADO, 1986, p. 16).
Por meio das descrições do narrador é que
caracterizamos a ação como fechada, pois a história tem princípio, meio e fim e
o leitor tem conhecimento do destino final das personagens: a família fica
feliz com a nova filha e com a volta da fala da garota; esta permanece com planos
de falar vários palavrões na companhia de sua irmã. Vale ressaltar que toda a
história está voltada à reflexão sobre o uso da linguagem, por isso podemos
afirmar a existência da
metalinguagem no texto, ou seja, utiliza a história para explorar o uso das
palavras, as causas e consequências da descoberta delas.
Há a presença de um “estilo humorístico” (KHÉDE,
1986, p. 41) nesse conto, o que pode ser observado nos conflitos que vive a protagonista, confusa frente as contradições da língua e seu uso, pois palavras pequenas podem ser
um palavrão e palavrões podem ser pequenos, além de uma mesma palavra poder ser e não ser um palavrão, dependendo do seu significado, que pode variar. Desse modo, o uso recorrente do humor desestabiliza
a autoridade dos pais, que não encontram uma solução adequada para resolver
esses conflitos. Seu uso suaviza o caráter utilitário do texto, uma vez
que a personagem acaba sendo “absolvida” pelo humor: ela é reprimida, fica em
silêncio por algum tempo, mas, por demonstrar não saber a diferença entre uma
palavra de tamanho grande e uma palavra de sentido vulgar, que representa um
palavrão, ela não recebe nenhuma punição no fim da história e faz planos de
prosseguir com uso de palavrões.
O
parágrafo final da história retrata claramente o uso do humor, tão presente ao
longo de toda a história:
(...) Afinal, agora estava descobrindo que
não ia ser largada para trás só porque algumas pessoas enxergam cabelo nas
palavras. Ouviu todo aquele nhém-nhém-nhém, olhou para irmã, deu um sorriso bem
moleque e resolveu responder com um palavrão novo e bem enorme, que era para
todo mundo ficar logo sabendo que daí para frente aquela dupla de meninas ia
ser fogo: - MARAVILHOSAMENTE, pô! (MACHADO, 1986, p.22).
A
característica mais marcante do conto, como afirma KHÉDE (1986, p. 41), é a “crítica
social, principalmente das instituições voltadas para a infância”. Como já
afirmamos, os pais são os “detentores do saber”, cabe a eles diferenciarem os
conceitos de palavrões para que a menina se conscientize e pare de usá-los em
contextos impróprios. Entretanto, eles perdem a paciência com ela e quebram com
o “novo mundo”, mágico, da garota, atitude que a leva a parar de falar.
O
fato de a história retratar a proibição de palavras vulgares revela uma
preocupação educativa da autora, pois já demonstra aos leitores que fazer uso
desses termos não é permitido e pode causar “castigos” por parte dos pais.
Entretanto, não há uma moral explícita no livro, retratada por comentários do
narrador, já que este é neutro. Isso nos permite inferir que, pela menina fazer
planos de permanecer usando palavrões, o livro retrata o uso de palavrões como
algo natural no processo de aprendizagem infantil da linguagem, por isso, não
condena a garota por usá-los (apenas demonstra uma preocupação dos pais, que
acarreta no silêncio da garota).
Referências
KHÉDE,
S. S. Personagens da literatura infanto-juvenil.
São Paulo: Ática, 1986.
MACHADO,
A. M. Palavras, Palavrinhas e Palavrões.
São Paulo: Quinteto Editorial, 1986.
GT 3 – Literatura e
Ideologia.
Muito legal
ResponderExcluirMuito boa essa análise.
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