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A coleção “Criança consciente: construindo um mundo melhor”
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A coleção “Criança consciente:
construindo um mundo melhor”, publicada pela Brasil Cultural, reúne oito livros
paradidáticos que abordam histórias ligadas à cidadania e meio ambiente.
Integra o projeto “Ler, conviver e aprender”, que se propõe a “estimular e
desenvolver o prazer pela leitura” e “fortalecer o contato familiar”, segundo
consta no site oficial da Brasil Cultural (2013). O
site também disponibiliza uma sinopse de cada livro, apresentando a relação da
história com o meio ambiente:
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O primeiro livro apresentado, Bafo de onça não quero, não!, aborda uma
excursão escolar ao zoológico, quando dois amigos se surpreendem com o fato de
que também os animais precisam de higiene bucal. O segundo livro, Cidadania a gente aprende, conta a
história de dois amigos, João e Maria, que têm a oportunidade de exercer a
cidadania, tendo como ponto de partida a arborização urbana. O terceiro
exemplar, Não vem com essa, tô fora, trata
da conscientização sobre os danos das drogas na vida das pessoas e na
sociedade.
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Em A
fada d’água, a garota Lívia faz uma viagem pelo mundo da fantasia e
percorre todas as etapas do tratamento da água. Na história Lixo em lugar certo, o garoto Guilherme
vive uma experiência comparativa entre passado e presente que o leva a pensar
sobre o destino do lixo e as implicações ao meio ambiente. Já Maria Clara e o
indiozinho Caruana são as personagens centrais do livro Amigos do meio ambiente. Em experiências conjuntas, os dois
conhecem um a cultura do outro para aprender a cuidar do meio ambiente.
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Os dois últimos livros tocam em assuntos
que também têm se destacado na educação escolar. Princesa Margareth retrata uma menina amável, tratada como princesa
no ambiente familiar, mas que é vítima de bullying
na escola. E, por fim, A turma da Naty
contra a Denguemur focaliza ações coletivas que podem ser somadas às do
poder público na luta contra a dengue.
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Trata-se, de fato, de uma coleção de
livros paradidáticos que se constituem na relação com o literário, reunindo o
ficcional e o ilustrativo, explorando cores e imagens.
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Entre
o paradidático e o literário
Antes de discutirmos sobre a proposta ambiental
presente na coleção “Criança consciente”, entendemos que, em se tratando de
livro paradidático, precisamos, antes, discutir o que é a que se propõe esse
tipo de material e que relações são possíveis de se estabelecer com a
literatura.
Ricardo José Duff Azevedo, escritor,
ilustrador e doutor em Letras (Teoria Literária e Literatura Comparada) pela
Universidade de São Paulo, no artigo intitulado
“Livros para crianças e literatura infantil: convergência e dissonâncias”, publicado
em 1999 e disponibilizado no site pessoal do autor,
traz um levantamento dos tipos de livros encontrados em prateleiras de
livrarias e direcionados a crianças: livros didáticos; livros paradidáticos;
livros-jogo; livros de imagem; CD-rom; livros de literatura infantil.
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Nosso interesse está voltado à
compreensão do paradidático e do que se compreende por literatura infantil. Quanto
aos livros paradidáticos, Azevedo (1999, p. 2) observa que se tratam, assim
como os didáticos, de um material essencialmente utilitário, reunindo
informações objetivas para transmissão de “conhecimento e informação”. “Em
geral, abordam assuntos paralelos, ligados às matérias do currículo regular, de
forma a complementar os livros didáticos”. Em síntese, os temas focalizados
pelos livros paradidáticos compreendem preservação do meio ambiente, educação
sexual, prevenção de doenças, amor à natureza, características da vida no campo
e na cidade, cidadania, prevenção contra uso de drogas, entre outros.
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Curiosamente, assim como os livros
didáticos, os paradidáticos requerem atualização periódica, conforme esclarece
o autor, pois tratam de assuntos pontuais, atuais, que se modificam com o
passar do tempo. Como exemplo, podemos citar a dengue. O assunto passa a ser
foco dos livros paradidáticos porque se trata de um problema em vigência. Se
deixa de existir, de certa forma, perde o interesse utilitarista.
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Quanto à literatura infantil
propriamente dita, Azevedo (1999, p. 5) explica que não tem a pretensão de
defini-la, considerando que se trata de um assunto que dá margem a opiniões e explicações
de teorias diversas. Contudo, considera ser possível afirmar que a literatura,
“em termos, é uma arte (em oposição à ciência) feita de palavras”. Sempre
recorre à ficção, caso contrário seria registro histórico, reportagem ou mesmo
biografia, entre outros. Há, também, motivação estética, isto é, “em princípio
não tem utilidade fora buscar o belo, o poético, o lúdico e o prazer do leitor”;
não é, portanto, utilitária. Vincula-se à subjetividade, ao inesperado. Costuma
ser ambígua, podendo brincar com as palavras e mesmo inventá-las, sem
aprisionamentos à norma culta da língua.
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Interessante é que, pensando em
literatura nacional para crianças, a perspectiva utilitarista já se faz
inscrita de forma imbricada ao literário desde o início. Segundo Azevedo (1999),
a obra de Monteiro Lobato, como fundadora, de certa forma, da moderna literatura
voltada a crianças, reúne, ao mesmo tempo, aspectos do mágico, do original e do
ficcional e uma perspectiva utilitarista, recorrendo, também, à intenção
pedagógica. O autor se refere a isso como uma espécie de hibridismo entre o
literário e o utilitarista/pedagógico. Com base na discussão aqui apresentada é que buscamos
observar analiticamente a relação possível entre literatura e meio ambiente em
livros paradidáticos da coleção “Criança consciente”.
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O discurso do "ecologicamente correto"
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Pelas temáticas distribuídas entre os
oito exemplares da coleção “Criança consciente: construindo um mundo melhor”, observamos,
justamente, a presença de temas apontados por Azevedo (1999) como sendo
geralmente focalizados pelos livros paradidáticos: preservação do meio
ambiente, prevenção de doenças, amor à natureza, cidadania, prevenção contra
uso de drogas, entre outros.
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Para fins de uma proposição analítica, focalizamos
quatro desses oito livros que mais diretamente se relacionam com questões
vinculadas ao meio ambiente: “Amigos do meio ambiente”, “Lixo tem lugar
certo!”, “A fada d´água” e “A turma da Naty contra Denguemur”. Os três primeiros de autoria de Denise Telles
e o último de Eduardo
Bento. “Amigos do meio ambiente” é ilustrado por Betina de
Holanda, Salatiel de Holanda e Salu dos Santos. Marco Cortez
faz a ilustração de “Lixo tem lugar certo!” e Betina de Holanda é a
ilustradora de “A fada d’água” e “A turma da Naty contra Denguemur”.
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Objetivando discutir como se dá a
relação entre literatura e meio ambiente nesses livros, partimos de uma
perspectiva de análise materialista do discurso, de vertente francesa. Esclarecemos,
contudo, que a discussão aqui apresentada não se configura em interpretações
provenientes, propriamente, de uma análise discursiva, mas são tateamentos
iniciais de um percurso analítico, que pode auxiliar olhares outros para o
material, ao menos geradores de incômodos e novas problematizações de lugares/sentidos
estabilizados.
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Ao considerarmos as condições de
produção dos livros, o paradidático emerge como condição requerida para se pensar
a relação entre formulação e funcionamento discursivo. Isso significa que não
se pode desconsiderar que, frente às condições de produção de livros do gênero
paradidático, está inscrito em sua constituição o princípio utilitarista e
educativo padrão de moldar comportamentos tidos como “adequados” e “desejados” para
a formação de um modelo padrão de “cidadão”.
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No primeiro contato com a coleção
“Criança consciente: construindo um mundo melhor”, o incômodo inicial surgiu da
sustentação, pelo título, de sentidos estabilizados, como se fossem óbvios,
transparentes. Referimo-nos aos termos “consciente” e “mundo melhor”, que
aparecem no título e subtítulo da coleção. A naturalização desses termos, na
relação com o meio ambiente e a educação, ocorre devido ao não questionamento
sobre o que é ser consciente: ser consciente em relação a que, para que, para
quem e em que lugar e situação social? O mesmo ocorre com relação à ideia do
que seja um “mundo melhor”. Se é “melhor”, não há, como efeito, por que se
questionar. Propõe-se apenas a adesão à “luta”; não se interroga o que é um
“mundo melhor”. Melhor em relação a que, para que, para quem, sob qual ponto de
vista? Portanto, enunciar “criança
consciente” e “mundo melhor” é positivar um lugar de defesa do mundo pela
educação/formação de crianças supostamente comprometidas com esse mundo a vir a
ser. Em termos mercadológicos, funciona a perspectiva do vendável, justamente
ao se interditar a questionabilidade do maniqueísmo aí vigente: consciente X
sem consciência; melhor X pior.
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O problema é que a ideia de “criança
consciente” em relação ao meio ambiente e à cidadania, que tem sido propagada
no e pelo discurso pedagógico, e que tende a se fazer presente nos materiais
didáticos, paradidáticos e paradidáticos literários, se sustenta na propagação do
discurso “ecologicamente correto” e do “discurso cidadão”, como espécies de
tipologias discursivas. Daí que o foco é para o resultado (como produto) de
“ser consciente” e do apagamento do processo necessário para a elaboração
crítica da ideia do que seja consciência ou um mundo melhor.
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Exemplificando: Certa vez um menino de
oito anos estava para atravessar a rua acompanhado da mãe. Então ele disse a
ela que para atravessar a rua precisariam passar pela faixa de pedestre. A
questão é que, nas proximidades, não havia faixa de pedestre. Então a mãe
explicou isso ao menino e esclareceu como fariam para atravessar de forma
segura, na ausência da faixa. O menino se recusou a atravessar, chorou, fez
birra, e queria de toda forma fazer a mãe caminhar até que pudessem encontrar
uma faixa de pedestre, alegando que a professora havia dito que não poderiam
atravessar a rua fora da faixa. Então a mãe perguntou ao menino se a professora
havia explicado sobre como proceder na ausência de faixas, e que a cidade, em
sua (des)organização urbana, apresenta deficiências estruturais, que deveriam
ser de responsabilidade do poder público. Também, perguntou ao filho se a
professora discutia tais deficiências, e como, então, eles poderiam pensar
essas questões. A criança, perdida, só conseguia voltar à ideia da proibição: É
proibido porque é proibido. Ponto. Ou seja, todos os porquês estavam
silenciados pelo “faça isso, que é a coisa certa, e ponto final”. Trata-se de
um exemplo, de fato corriqueiro, que vem para ilustrar o que estamos chamando
de visibilizar o produto e apagar o processo, ou seja, simplesmente tomar a
ideia de consciência como algo cristalizado, inquestionável, assim como
reproduzir a ideia de “mundo melhor”, utopicamente sustentado.
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Como afirma Orlandi (2001, p. 167), “a
melhor maneira de preservar é construir condições para a preservação. E isto
não se faz só com palavras de efeito [como criança
consciente e mundo melhor, por
exemplo], se faz construindo condições materiais básicas. Em consequência, a
preservação viria por si”. Para ela, o que se tem feito é praticar “o discurso
ecológico da irresponsabilidade”, no sentido de que “se fala na
responsabilidade do indivíduo na falta de responsabilidade social do Estado”. E
isso se põe na relação com o discurso da cidadania, que se apresenta, nele,
como algo sempre a vir a ser. Contudo, ainda segundo a autora, “numa República
já nascemos cidadãos. Não é preciso, pois, reivindicar a cidadania. Já a temos
por direito. Qualificar cidadãos é tarefa do Estado e se ele não cumpre só
podemos reivindicar qualificação se, no real de nossa história, esse sentido já
tiver sido posto”.
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Orlandi (2001, p. 175) chama a atenção para
o fato de que
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as leis que se discutem quando se
trata do meio ambiente, se pensamos um ser histórico e simbólico, não são leis da natureza mas leis sobre a natureza a serem elaboradas e
praticadas. É preciso além disso produzir um discurso que não se sustente
apenas no que já é conquista do saber e da racionalidade, mas admita também a
irracionalidade, a relação da sociedade com a história (nem sempre possível) e
com o político e, principalmente, com o imaginário que rege as relações com o
real e com o que faz sentido.
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Considerando essa ideia de discurso
“ecologicamente correto”, tomado como bandeira pela escola, especificamente
quanto aos quatro livros tomados para tratamento analítico-discursivo, observamos
que, na condição (e lugar) de livros paradidáticos, eles não têm como não ser
utilitaristas e cristalizadores de sentidos. Embora, por si, tais livros não
sejam literatura, recorrem a ela para cumprir sua eficácia utilitarista e
pedagógica instrucional. E tal recorrência se faz calcada em personagens clássicas/estereotipadas
da literatura, como a fada (A fada d’água),
o vilão e o super-herói (A turma da Naty
contra Denguemur).
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Apenas em termos paradidáticos, os
livros fogem, de certa forma, a representações totalmente estereotipadas na
condução do enredo e à forma como tais personagens são retratadas. Em Amigos do meio ambiente, o indiozinho
Caruana é filho de um professor universitário que coordena um projeto de
preservação das matas ao redor dos rios e está se instalando na cidade. Foge,
no sentido de que o índio não é posto como mero objeto de estudo, mas está ao
lado de quem é apresentado como detentor do conhecimento científico, no caso,
seu pai, professor-pesquisador, no contexto urbano. Também se trabalha a ideia
de que o conhecimento geográfico da aldeia onde o indiozinho morava não é extensivo,
de antemão, a outras áreas. O que problematiza a ideia de que índio e natureza seriam
uma e a mesma coisa. Trabalha-se, ainda,
uma proposta de diversidade cultural e de valorização de especificidades
culturais, além do intercâmbio entre culturas.
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Discursivamente, contudo, sustenta-se a ideia
da autoridade acadêmico-científica regulatória das ações de preservação
ambiental. Retrata-se o professor universitário, o projeto universitário de
preservação, o tratamento de doutor a um pesquisador nomeado por cientista, o
domínio do conhecimento sistematizado, a experiência em campo, a organização de
campanhas de “conscientização”, mobilizadas por crianças, para divulgar a
necessidade de preservação ambiental e a ideia de cidade em “perfeita harmonia
com o meio ambiente”, enunciada ao final do livro. Isso tudo sinaliza que o
foco é para questões pontuais do cotidiano, que se apresentam como
responsabilidade da escola no sentido de instruir, orientar, “conscientizar”, e
de responsabilidade da criança, a quem cabe seguir as orientações, no campo de
inquestionabilidade, apresentadas pelas autoridades científicas/educacionais.
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Em Lixo
tem lugar certo! aparece novamente a figura da professora. Há ficção, mas
sempre girando em prol do educativo com fins utilitaristas. No caso da história
A turma da Naty contra Denguemur, a
dengue, como o mal ameaçador da sociedade, materializa-se na personagem vilã,
Denguemur. O literário está na construção da história ficcional, calcada na
disputa entre o bem e o mal, e na luta para se vencer o inimigo, embora preso a
uma luta real, de fato, da sociedade contra o mosquito da dengue e sua
proliferação. Ao final do livro, sob o título “Saiba mais”, como se fosse um
almanaque, apresentam-se textos que explicam o que é a dengue, os tipos da
doença, quem é o mosquito, como se proteger contra a dengue, além de
curiosidades. A fada d’água também
recorre ao mundo ficcional, centrado na figura da fada. A história traz a
fantasia de viajar na e pela imaginação dos contos de fada. Contudo, mantém-se
a finalidade instrutiva, de preservação do meio ambiente pelo não desperdício
de água.
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A questão que se impõe frente ao
funcionamento e aos efeitos desses livros é justamente como trabalhar com esse
material, numa perspectiva literária, a ponto de não ser reducionista e ficar
apenas preso a frases feitas, meramente decorativas, ou visões estereotipadas de
educação ambiental e “consciência” ambiental, assim como de “literatura
ambiental” funcionalista. Antes, requer-se entender que, frente às suas
condições de produção, tais livros são paradidáticos. Dialogam com a
literatura, mas não se propõem a ser literários. E isso, por si, já faz toda a
diferença. Mas é possível criar outras histórias, com os alunos, a partir
dessas, em que o literário advenha como elemento central, retirando o peso
utilitarista e forçosamente pedagógico. Pensamos que, do lugar literário, da
imaginação, da relação com o simbólico, o pedagógico se instaura como processo,
não se reduzindo a função. Além disso, é mais propriamente pelo imagético, no
caso dos livros da coleção, que as histórias se abrem ao literário, pois, nesse
caso específico, não estão presas, propriamente, ao instrucional.
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Orlandi (2012, p. 144-155) esclarece que
“um enunciado pode ter muitas versões, e nelas, os sentidos não são os mesmos”.
Ao propor uma inversão do enunciado “O futuro dos recursos” para “Os recursos
do futuro”, ela explica que, na primeira formulação “pressupõem-se que temos
estes recursos e nos debruçamos sobre a vontade de mantê-los, expandindo-os ou
sobre a ameaça de perdê-los”, enquanto na segunda formulação, parafrasticamente
proposta por ela, admite-se “o não sabido, o não existente e o que poderá vir a
existir”. Para ela, não determinamos o futuro mobilizados por nossas vontades,
mas há como “refletir sobre o que temos e deixar aberta a porta do que se pode
passar entre o irrealizado e o possível”.
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REFERÊNCIAS
AZEVEDO,
Ricardo. Livros para crianças e literatura infantil: convergência e
dissonâncias.Disponível em: http://www.ricardoazevedo.com.br/wp/wp-content/uploads/Livros-para-criancas-e-literatura-infantil.pdf.
Acesso em: 8 set. 2013.
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BRASIL
CULTURAL. Projeto Criança Consciente. Disponível
em: http://www.editorabrasilcultural.com.br/index.php/2013-02-03-01-03-42/projeto-de-leitura-ler-conviver-e-aprender/projeto-crianca-consciente.
Acesso em: 8 set. 2013.
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ORLANDI,
Eni Puccinelli. A textualização política do discurso sobre a Terra. In: ______.
Discurso e texto: formulação e
circulação dos sentidos. Campinas: Pontes, 2001. p. 163-177.
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______.
Os recursos do futuro. In: ______Discurso
em análise: sujeito, sentido, ideologia. Campinas: Pontes, 2012. p. 143-150.
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GT 4
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