O conto História
da Dona Baratinha é um
conto popular português que faz parte da tradição oral. Ele foi publicado pela
primeira vez em 1890 com o título original História
da Carochinha pelo linguista e pedagogo português Adolfo Coelho, que
recolheu e transcreveu diversos contos portugueses tradicionais. Em 1896,
o jornalista carioca Alberto Figueiredo Pimentel publica no Brasil, pela
Livraria do Povo de Pedro Silva Quaresma, a coletânea Os
contos da Carochinha, reunindo 61 contos, entre eles o conto
intitulado História da Dona
Baratinha.
A publicação deste livro é um marco para
a literatura infantil, dado que antes deste todos os livros infantis eram
editados em Portugal.
Os Contos da Carochinha compreende contos de Perrault, Grimm e
Andersen, fábulas, apólogos, alegorias, contos exemplares, lendas, parábolas,
provérbios, contos jocosos, etc.
Em 1996, Ana
Maria Machado publica pela primeira vez uma adaptação da História da Dona Baratinha,
pela editora FTD, na coleção Lê pra mim. Em 2002, o mesmo título faz parte da
sua nova coleção Histórias à Brasileira, publicada pela editora Companhia das Letrinhas,
composta de três volumes com diversos contos tradicionais europeus e fábulas. A História da Dona Baratinha faz parte do primeiro volume que,
segundo a autora, é o resultado de uma soma de pesquisas e de um mergulho na
memória e na tradição, mas também, acrescentamos, de sua contribuição crítica - pois ela mesmo confessa adaptar e narrar as histórias de maneira pessoal e de acordo com seu estilo literário.
Em História da Dona
Baratinha, Ana Maria Machado vai adaptar o conto ao contextualizá-lo
no Brasil dos anos 90, ou seja, em uma sociedade em plena mutação dentro de um
país em desenvolvimento, aberto às mudanças do século XX, mas, paradoxalmente,
ainda apegado a valores tradicionais como o casamento e a religião. Neste contexto, Dona Baratinha representa a mulher moderna, independente e senhora de
si, que trabalha, tem poder financeiro e legitimidade social para tomar decisões. Entretanto, carrega a herança de gerações
anteriores, ou seja, a visão de que para se realizar e ser feliz tem
obrigatoriamente que se casar e constituir uma família.
Dona Baratinha, a dona
do seu nariz.
É
importante salientar que este conto, oriundo da tradição oral e
popular do norte de Portugal, não fazia parte do repertório da literatura
infantil e juvenil. Somente a partir da versão de Figueiredo Pimentel é que ele
passa a ter como público alvo a criança, inclusive se vê de maneira explícita a
função pedagógica e moral que vai sendo incorporada às diversas modificações que
o transformam em um discurso mais próximo desse novo leitor.
A
versão do conto por Ana Maria Machado também é narrada na terceira pessoa e inicia com a célebre frase:
“Era uma vez”, frase esta que estabelece o contrato com o maravilhoso e que também se encontra no fato de ele se inscrever na tradição dos bestiários (contos
protagonizados por animais): todas as personagens fazem parte do
mundo animal. A personagem principal, Dona Baratinha é antropomórfica, tendo
todas as características e ocupações da mulher dona de casa. Já na primeira ação do conto, encontramos ela varrendo a casa.
A aclimatação (adaptação de temas, personagens, linguagem etc.) à realidade de um público leitor diverso do original já tinha sido feita
por Figueiredo Pimentel na primeira versão. Uma carochinha é o diminutivo de
carocha, um besouro dourado originário do norte do Portugal. No Brasil, tal
inseto era desconhecido, razão pela qual Pimentel o transformou em
barata, um inseto comum a todas as regiões do país.
Essa
primeira ação é a peripécia que vai desencadear a história: ao achar uma moeda quando está varrendo a casa, Dona Baratinha pensa ter ficado rica e que já pode se casar. É importante destacar
que, na versão original, Dona Carochinha acha o dinheiro e não sabe o
que fazer com ele, razão pela qual vai pedir conselhos às vizinhas. Resposta de uma
delas: ir para a janela e procurar um marido. Na versão de
Figueiredo Pimentel, a preocupação também está centrada na moralidade, Nela,
Dona Baratinha procura por toda parte o dono do dinheiro, mas dado que não o
encontra, resolve fazer um rico enxoval e sai em busca de um marido.
Já Ana Maria
Machado constrói sua Dona Baratinha como a representação da mulher moderna, tal como
discorremos mais acima. Sua personagem não necessita de conselhos, pode decidir sozinha
que vai por uma fita no cabelo e ir para a janela procurar um marido. O
individualismo da sociedade brasileira dos anos 90 está presente nessa ação da
personagem. No entanto, a relação entre o dinheiro e a ascensão
social é novamente posto em evidência. É através do dinheiro, representado pelo dote,
que ela pode ascender ao casamento.
Nas
primeiras versão do conto, devido ao contexto histórico e cultural, é
compreensível que o casamento seja o objetivo principal na vida da mulher
do século XIX. Concluímos que a personagem recriada por Ana Maria Machado
é uma Dona Baratinha moderna, cujo objetivo principal na vida não é apenas se
casar. Entretanto, ela sofre do chamado “complexo de cinderela”,
tese que defende que toda a mulher tem uma necessidade psicológica de ser
dependente. Não importa o quanto ela seja inteligente, bem-sucedida ou
sofisticada, toda mulher quer se salva da sua própria independência.
Conforme
o conto de Machado, Dona Baratinha vai para a janela e diz:
“Quem quer casar com a Dona Baratinha que tem fita no cabelo e dinheiro na caixinha”? (MACHADO, 1996,
p. 51)
Com
essa frase a personagem põe em evidência duas qualidades: a beleza e a
vaidade, pois ela tem fita no cabelo, mas também sua condição social, dado que
ela tem dinheiro na caixinha. A segunda ação é a escolha do marido, a cada
pretendente ela faz a seguinte pergunta:
“-E como é que você faz de noite?” (MACHADO, 1996, p. 51).
O boi, por exemplo, responde:
MUUUUUU! (MACHADO,
1996, p. 51)
Ouvindo as respostas dos pretendentes, que não se
encaixavam no perfil procurado por ela, então contestava:
- Ai, não! É muito barulho, não me
deixa dormir! Sai fora! (MACHADO,
1996, p. 52).
A
resposta irreverente de Dona Baratinha mostra que ela é uma mulher segura de si e preocupada com
seu conforto pessoal, que parece ser o principal critério de seleção do futuro
marido. Ainda, é importante citar que na versão original de Adolfo Coelho, a
personagem Dona Carochinha faz a mesma pergunta aos pretendentes, porém ao
escutar a resposta diz:
- Nada, nada, não me serves que me acordas os meninos de noite. (COELHO,
1890, p.80)
Na versão analisada, entre os bichos que passam e que serão
os futuros pretendentes, estão boi, burro, cachorro, bode, carneiro, gato, galo,
papagaio, ratinho. Tais pretendentes são animais do mundo rural à exceção do
papagaio, que introduzido por Ana Maria Machado é um elemento de aclimatação,
que tem a função de abrasileirar o conto. O papagaio não aparece no texto
original e tampouco no texto de Figueiredo Pimentel. Dona Baratinha escolhe o ratinho,
o único animal que tem a fala discreta e que não vai incomodá-la.
A
questão da classe social é novamente posta em evidência, Dona Baratinha
contrata as abelhas para preparar o bolo e os doces; delega os preparativos, o
que mostra que deve ser uma mulher burguesa, acostumada a delegar. O trabalho
não é valorizado.
O
ratinho, insatisfeito, diz que em casamento tem que ter feijoada, imaginamos
que ele venha de uma classe social inferior. Devido a sua preocupação com a
comida e por sua vontade de fazer uma refeição completa, isso mostra que talvez
ele tenha passado necessidade e tenha conhecido a fome e a falta de alimentos.
Dona
Baratinha cede ao pedido do noivo e contrata as melhores cozinheiras. Novamente ela delega o
trabalho, encomenda os melhores produtos. Na versão original há apenas o
feijão. A feijoada é um prato brasileiro derivado de um prato português do
mesmo nome, mas os ingredientes indicam que se trata de uma feijoada
brasileira, o que pode ser considerado como mais um elemento de aclimatação com
intuito de abrasileirar o conto.
O
casamento é na igreja. Ela se casa
na igreja e tem um padrinho que vai acompanhá-la, como determina a tradição
católica (na ausência do pai é o padrinho quem acompanha a noiva até o altar), o que mostra que, embora seja uma mulher moderna, independente, ela é apegada às tradições da sociedade em que vive. A
questão do padrinho deixa em evidência que talvez ela seja órfã ou bastarda e
que, com o casamento, ela busque completar esse vazio da presença paterna e
masculina em sua vida.
Ela
chega à igreja de caramujo, fazendo referência a uma suposta carruagem, e
novamente evidenciando seu complexo de cinderela; a questão social é novamente
trazida pelo tema dos convidados bem-vestidos. O
noivo guloso come a feijoada antes do casamento e acaba caindo na panela, tendo
como fim a morte.
Na segunda parte do conto, na versão transcrita por Adolfo
Coelho, a morte de João Ratão vai desencadear uma série de ações que afetarão
as outras personagens do conto. Ao fazê-lo, Coelho põe em evidência o fato de que a desgraça de um indivíduo pode afetar toda uma comunidade, assim valorizando o
coletivo sobre o individual.
A solução para o desfecho da Dona Baratinha de Figueiredo
Pimentel é que a personagem decide que nunca mais vai se casar. Já em Ana Maria
Machado, Dona Baratinha decide aproveitar a vida:
Coitado do ratinho! Mas para mim foi uma sorte. Não podia dar certo um
casamento com um noivo que gosta mais de feijão do que de mim. Melhor eu ficar
sozinha e gastar meu dinheiro para me divertir. E assim fez (MACHADO, 1996, p. 57).
Com
a morte de João Ratão, ela finalmente se libera do seu “complexo de Cinderela”
e vai enfim tornar-se mulher e dona do seu nariz. Ao mesmo tempo, ela passa a
imagem de uma mulher extremamente egoísta diante da morte do noivo, uma vez que
julga que o noivo não merecia se casar com ela e que sua morte não merece
nenhuma consideração.
Ana
Maria Machado produz em seu texto uma transvalorização, o que, segundo Gérard Genette,
é uma transformação de natureza axiológica da imagem de uma personagem. Existem
dois tipos de transformação: a
revalorização - processo pelo qual uma personagem que era antipática ou que tinha
uma imagem negativa vai se tornar simpática e ter uma imagem positiva ou neutra
no hipertexto - e a desvalorização, que é o processo inverso.
Em História
da Dona Baratinha de Ana
Maria Machado temos uma desvalorização da personagem que, recriada segunda a
imagem da mulher moderna dos anos 90, acaba aos olhos do leitor sendo vista
como uma mulher fria e calculista.
Veja abaixo o vídeo com a versão de Alberto Figueredo Pimentel.
Para visualizar a história na versão de Ana Maria Machado acesse o link:
Fontes:
COELHO, Adolfo. Contos Populares Portugueses.
Lisboa: Dom Quichote, 1890
GENETTE, Gérard. Palimpsestes. Paris: Seuil,
1982
MACHADO, Ana Maria. História
da Dona Baratinha. São Paulo: FTD, 1996
PIMENTEL, Figueiredo. Contos da Carochinha. Rio de
Janeiro- Belo Horizonte: Quaresma, 1992
GT5
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