domingo, 25 de agosto de 2013

Aspectos linguísticos da literatura infantojuvenil de Ruth Rocha: uma análise de "Marcelo, marmelo, martelo"

Uma análise de Marcelo, Marmelo, Martelo

“Cada época irá proferir o discurso que revela seus ideais e expectativas em relação a criança.” (SANTOS, 2001, p. 13)
 
 
A autora Ruth Rocha parece sempre ter demonstrado um interesse particular e criterioso pelo jogo de ideias dentro universo infantil, assim como pela linguagem de suas obras. Sua primeira obra publicada, intitulada “Palavras, muitas palavras”, já nos conduz a esse pensamento. Por meio da linguagem literária, a autora cria universos únicos, em que as palavras utilizadas exercem um papel tão fundamental quanto os personagens.
 
Em seu livro “Marcelo, Marmelo Martelo”, a autora cria uma possibilidade de vivência, por parte do leitor, de situações cotidianas na busca do “eu”, uma vez que demonstra que a criança também deve e pode ter questionamentos, opiniões, atitudes, enfim, até mesmo tomar decisões. Destacamos esses aspectos psicossociais, pois não podemos nos esquecer que a imagem da criança por ela mesma e pela sociedade vem mudando gradativamente, de uma criança sem expressividade, imersa em um mundo à parte dos adultos e da realidade,  para uma criança que começa a aparecer, a se expressar e a ocupar, cada vez mais, um lugar social.

  A visão que temos hoje da criança é uma visão muito especial, que se transformou através dos tempos.”( SANTOS, 2001, p.14)

Nesse processo diacrônico da visão infantil, a literatura passou a ocupar uma função utilitária, pedagógica, e por que não dizer: educadora. E é esse aspecto que destacamos nas obras da autora Ruth Rocha: a educação por meio do raciocínio e do jogo de ideias.

Em entrevista à revista Nova Escola, a resposta da autora em relação à linguagem infantil e à linguagem desse gênero literário foi: “Dou um tom mais infantil à obra, mas não fico tentando buscar palavras que sejam mais fáceis. O livro também é uma forma de enriquecer o vocabulário, [...]”. Isso reforça a ideia de que a escritora deve utilizar a linguagem não apenas com uma finalidade narrativa, mas também pedagógica.
 
Podemos observar uma reflexão linguística em diversas obras de Rocha, no entanto, vamos nos ater a sua obra mais famosa e vendida: Marcelo, Marmelo, Martelo. As possibilidades linguísticas já são apresentadas no próprio título, em que observamos nos vocábulos "Mar-ce-lo", "Mar-me-lo" e "Mar-te-lo" a forma como a simples troca da primeira letra da segunda sílaba ("c" por "m" e depois por "t" - ce, me, te) realiza, de forma simples e descontraída, uma amostra de como funciona o sistema linguístico tão complexo da nossa língua portuguesa. A narrativa inicia com o personagem Marcelo questionando a existência das coisas, como a chuva, o mar, o cachorro.

Marcelo vivia fazendo perguntas a todo mundo:
— Papai, por que é que a chuva cai?
— Mamãe, por que é que o mar não derrama?
— Vovó, por que é que o cachorro tem quatro pernas?

E em seguida esses questionamentos se expandem para o campo da análise crítica sobre as escolhas realizadas pelos adultos, no caso, seu pai e sua mãe.


Uma vez, Marcelo cismou com o nome das coisas:
— Mamãe, por que é que eu me chamo Marcelo?
— Ora, Marcelo foi o nome que eu e seu pai escolhemos.
— E por que é que não escolheram martelo?
— Ah, meu filho, martelo não é nome de gente! É nome de
ferramenta...
— Por que é que não escolheram marmelo?

A história continua numa gradação que passa à uma análise feita pelo personagem sobre a sociedade de forma geral, e suas escolhas linguísticas.


Daí a alguns dias, Marcelo estava jogando futebol com o pai:
— Sabe, papai, eu acho que o tal de latim botou nome errado nas coisas.
Por exemplo: por que é que bola chama bola?

 
A partir desse ponto, o personagem evolui de uma criança que observava, questionava e criava hipóteses, para uma criança que toma suas próprias decisões.

E Marcelo continuou pensando:
"Pois é, está tudo errado! Bola é bola, porque é redonda. Mas bolo nem sempre é redondo [...] Eu acho que as coisas deviam ter nome mais apropriado. [...] Também, agora, eu só vou falar assim".
[...]
Logo de manhã, Marcelo começou a falar sua nova língua:
— Mamãe, quer me passar o mexedor?
— Mexedor? Que é isso?
— Mexedorzinho, de mexer café.

Gostaríamos de chamar a atenção para dois aspectos em especiais nesse livro, a evolução do personagem, e sua expressividade linguística. Por meio da linguagem, Marcelo vai se afirmar como ser por meio de uma espécie de idiossincrasia, relacionando os nomes com as coisas. Nesse momento, a autora levanta a importância da linguagem como meio de comunicação, quer entre pessoas ou grupos sociais, mas ainda assim, Marcelo vai insistir em sua autonomia enquanto pessoa, por assim dizer, por meio da linguagem, mantendo "sua forma de falar".

O pai de Marcelo resolveu conversar com ele:
— Marcelo, todas as coisas têm um nome.
E todo mundo tem que chamar pelo mesmo nome porque, senão, ninguém se entende...
— Não acho, papai. Por que é que eu não posso inventar o nome das coisas?


A história prossegue com vários neologismos que mostram as possibilidades de formação de palavras com termos da própria língua portuguesa, e não um neologismo com estrangeirismos, o que aponta para uma valorização da língua. O ápice da narrativa acontece quando a casinha do cachorrinho de Marcelo pega fogo e ele não consegue se fazer entender por meio de sua maneira de falar, isto é, por meio de seu vocabulário próprio. Com isso, a autora demonstra que a comunicação é essencial entre as pessoas, assim como a compreensão daquilo que é comunicado. O personagem Marcelo fica frustrado pelo fato dos adultos não entenderem o que ele queria dizer, e Ruth, quase que metaforicamente, expõe que, não apenas a comunicação da criança, quando direcionada a um adulto,  não recebe o devido valor/atenção, mas também que as crianças não são compreendidas pelos adultos.

Quando Seu João chegou a entender do que Marcelo estava
falando, já era tarde.
A casinha estava toda queimada. Era um montão de brasas.
O Godofredo gania baixinho...
E Marcelo, desapontadíssimo, disse para o pai:
— Gente grande não entende nada de nada, mesmo!

Ao final da obra, podemos observar mais uma vez o papel fundamental da linguagem e da boa comunicação, como meio de aceitação do indivíduo.

E agora, naquela família, todo mundo se entende muito bem.
O pai e a mãe do Marcelo não aprenderam a falar como ele, mas
fazem força pra entender o que ele fala.

Isso demonstra também, como dissemos ao início, como a imagem que da criança está em evolução, ou seja, como a criança, com o passar dos anos, vem sendo cada vez mais valorizada e cuidada. Podemos perceber, então, que a linguagem literária, mesmo para crianças, não necessita ser restrita, da mesma forma que as reflexões possibilitadas pelas obras infantis não precisam se restringir a simples observações de cunho moral, mas podem, como bem nos mostra Ruth Rocha, abarcar reflexões complexas, não apenas sobre o indivíduo, a sociedade, família, etc., mas também uma reflexão sobre a linguagem. Reflexões essas que, dado o sucesso da obra, nos demonstram que podem ser realizadas pelas crianças.
 
Reforçando o aspecto linguístico da literatura infantil de Ruth Rocha, ressaltamos que essa utilização linguisticamente rica da autora se encontra em todas as suas obras, com palavras que não menosprezam a capacidade intelectual de seu leitor, no caso, infantil/juvenil, mas também não lhe é incompreensível, inalcançável. Com uma linguagem de aspecto simples, porém de grande profundidade, a escritora é capaz de conciliar a reflexão moral, social e interna da criança, com uma reflexão sobre a linguagem e seus usos.

Assim, encerramos com uma citação de Moreira, que embora um pouco longa, consideramos essencial:

“[..] a linguagem constitui a chave que abrirá as portas de um mundo novo, desconhecido, mas repleto de perspectivas fantásticas. Por meio dela, a literatura se concretiza. A palavra é o instrumento de que se utiliza o escritor para transmitir seu pensamento; por isso, manipulá-la de forma criativa, mas com clareza e eficiência, é o desafio proposto a quem usa a palavra artisticamente. Assim, o jovem leitor, ao dominar a palavra escrita, entra no jogo para se acostumar com ela, explorando-lhe as possibilidades, desvendando os seus mistérios, tendo prazer no seu convívio. A linguagem se produz de modo integral quando intervem as estruturas fonológica, morfossintática e semântica. [...] A criatividade buscada na linguagem encontra-se na maneira de trabalhar, combinar e (re)aproveitar a imensa gama de recursos linguísticos da língua materna, sendo criado, pelo escritor, um sistema eficiente, mas, sobretudo, instigante e original. As combinações linguísticas engendradas resultam em marcas próprias que alcançam efeitos surpreendentes com fatos da língua simples e comuns, mas operacionalizados com mestria. A palavra, considerada em diferentes níveis, numa abordagem linguística plena, será apreciada, mesmo inconscientemente, porque possibilitará divertimento, aliado à sensibilidade.”

Sem dúvida, podemos observar claramente essa "criatividade buscada na linguagem", na literatura de Ruth Rocha.

BIBLIOGRAFIA
MOREIRA, S. M. Neologismos lexicais e aspectos lúdicos em obras literárias contemporâneas para crianças e jovens. Disponível em: http://revistas.unibh.br/index.php/dchla/article/view/403  

ROCHA, R. Marcelo, Marmelo, Martelo e outras histórias. Disponível em: http://www.unilago.com.br/download/arquivos/20996/[Infantil]_Ruth_Rocha_-_Marcelo_Marmelo_Martelo.pdf 

SANTOS; M. A.C. A compreensão de ser criança na contemporaneidade brasileira: A família , a sociedade e a escola. Disponível em: http://www.nead.unama.br/site/bibdigital/monografias/SER_CRIANCA.pdf

TALAMONI, Daniela. "Ruth Rocha": Leitura não pode ser só folia. Disponível em: http://revistaescola.abril.com.br/lingua-portuguesa/pratica-pedagogica/leitura-nao-pode-ser-so-folia-423575.shtml 

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